O direito mais importante

O direito mais importante

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Palestra por mim proferida no TRE/SP: Inclusão eleitoral e efetivação dos direitos políticos

http://youtu.be/QOdA5SJSQsY

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

PALESTRA NA UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO - CAMPO GRANDE/MS

















PALESTRA UCDB



Os direitos fundamentais na sociedade mundial e a emergência de um novo paradigma
















1. direitos fundamentais
Muito se fala e se escreve sobre direitos fundamentais. Pode-se mesmo afirmar que hoje vivemos um tempo em que quase todas as relações são fundamentalizadas. Fenômeno bastante recente, que há 20 anos não se fazia presente. Também aqui dá-se por compreendido o significado de um termo bastante complexo. Mais uma vez parece se manifestar o lugar-comum, a platitude com referência a um termo que, na minha compreensão, merece uma abordagem científica e, portanto, complexa.
Nessa linha, proponho dissecar o que vem a ser direito fundamental. Para Alexy, em um texto não muito discutido[1], Direitos fundamentais no Estado constitucional democrático, um direito humano pode ser fundamental se apresentar as seguintes marcas: a) universalidade; b) moralidade; c) preferencialidade; d) fundamentalidade; e) abstração.
Essas marcas fazem com que se impeça a inflação dos direitos fundamentais.














2. sociedade mundial
Por sociedade mundial se compreende o sistema social mundial, ou seja, a forma de reprodução da sociedade de todo o mundo[2], na qual os regionalismos não interferem de forma decisiva. Essa forma de observar a sociedade é de caráter ocidental, o que deixaria de fora da sociedade mundial aquelas sociedades que não fossem, ou que não reproduzissem os valores da sociedade ocidental, vale dizer, da sociedade pós-industrial e que positiva direitos fundamentais de liberdade e alguns de igualdade, isto é, sociedades com uma semântica própria, tais quais Japão e China: mas estas, também, não são capitalistas? A resposta positiva indica que, a despeito da existência de particularidades que possam informar as estruturas sociais de determinadas sociedades, elas também acabam por fazer parte da sociedade mundial.
A sociedade dita moderna é diferenciada funcionalmente, ou seja, é composta por sistemas sociais que têm uma função diferente de cada um: por exemplo, sistema jurídico, sistema político, sistema econômico, etc.
A sociedade brasileira parece se inserir nessa descrição, pois pode ser considerada como diferenciada funcionalmente, ainda que tenha um caminho a percorrer em direção a uma mais completa diferenciação funcional. Seus sistemas sociais, tanto quanto possível, se reproduzem com base em suas próprias estruturas.
Mas, há um aspecto que gostaria de ressaltar e que reputo relevante para a compreensão do tema: é a presença, no interior da sociedade mundial, que é diferenciada funcionalmente, de sociedades tradicionais, o que se encontra, em maior número, na América Latina e, especialmente, no Brasil. Falo, por óbvio, dos índios e dos quilombolas.
A presença dessas sociedades tradicionais no interior da sociedade brasileira diferenciada funcionalmente injeta uma enorme dose de complexidade na reflexão que deve ser feita sobre ou a partir do tema, sim, porque há diferença entre refletir sobre e refletir a partir, por exemplo, Adorno, em seu Minima Moralia, propôs-se a refletir a partir da vida lesada, pois que, na condição de judeu exilado, viveu essa realidade, é uma referência vivida.
Na minha maneira de observar o tema posso afirmar que escrevo a partir de uma realidade vivida da e na sociedade tradicional, mais especificamente, da sociedade indígena, e isso por conta da defesa constitucional dos direitos indígenas que fiz e faço na condição de procurador da república.
As sociedades tradicionais são autárquicas ou autônomas e mantêm uma relação heterárquica com a sociedade oficial ou ocidental, e não hierárquica, ou seja, encontram-se em pé de igualdade naquilo que diz com o reconhecimento de direitos. A assimetria nas relações de poder decorre da não concretização de direitos, o que é outra história, pois que eles já se encontram positivados na ordem jurídica.
No desenvolvimento das ideias, pode-se pensar em que a sociedade brasileira diferenciada funcionalmente, isto é, a sociedade ocidental, trata todos aqueles que não conseguem acessar seus sistemas parciais pela lógica inclusão/exclusão, e produz uma calamidade representada pela negligência. Essa observação vem acompanhada de um perverso evento que se denomina de inclusão tardia. De se notar, entretanto, que essa negligência, se referida aos índios, não significa que todos eles sejam negligenciados por uma exclusão, e isso porque não são todos os índios, sem embargo de séculos de contato com a sociedade envolvente, que querem acessar esses sistemas sociais, vale dizer, há sociedades indígenas que simplesmente querem reproduzir-se por operações baseadas não na diferenciação funcional, mas sim com base em estruturas tribais.
Essa abordagem sociológica encontra tradução na dogmático-jurídico-constitucional, cujo fundamento de validade são as normas dos artigos 208, 215, 216 e 231, as quais positivam o direito à autonomia de autorreprodução social, o que, no dizer do jurídico, significa proteger direitos culturais, formas de ser e de fazer, tradições, línguas e costumes, ou seja, a Constituição de 1988 permite afirmar que, por meio de suas normas, há o reconhecimento da cultura como elemento diferenciador de pessoas e que deve ser protegida. A cultura, sociologicamente, substitui, no século XX, a solidariedade do século XIX, que por sua vez substituiu a felicidade humana dos séculos XVII e XVIII.




























3. paradigma
A palavra paradigma é utilizada, a torto e a direito, pela teoria, mas sem a preocupação com o seu significado. Dá-se por compreendido um conceito de grande complexidade para a ciência. Talvez essa postura epistemológica seja adequada se se pensar em que a palavra fala por si, não havendo, portanto, necessidade de se esclarecer, de forma mais detida, o que ela significa. Esse argumento se relaciona ao coloquial lugar-comum ou, de forma mais sofisticada, platitude.
Todavia, se estamos a fazer uma abordagem científica ao tema proposto, então me parece imprescindível indicarmos o que entendemos por paradigma para que a comunicação possa se estabelecer entre palestrante e ouvintes.
Paradigma, assim, é, para Thomas Kuhn[3], uma matriz disciplinar[4]. Esta, de sua vez, se constitui basicamente de quatro elementos: a) generalização simbólica; b) compromissos coletivos com crenças; c) valores; d) o próprio paradigma ou exemplares.
A generalização simbólica é representada por fórmulas descritas pela lógica formal, por exemplo, f = ma[5]; compromissos coletivos com crenças, por exemplo, o calor é a energia cinética das partes constituintes dos corpos[6]; os valores propiciam aos especialistas em ciências naturais experimentar um sentimento de pertencimento a uma comunidade global[7]; e os exemplares, que são “as soluções concretas de problemas que os estudantes encontram desde o início de sua educação científica, seja nos laboratórios, exames ou no fim dos capítulos de manuais científicos ou mesmo nas publicações periódicas”[8].
Em um exercício de transposição desses argumentos ao direito, ou à ciência do direito, pode-se afirmar que, com relação à generalização simbólica, não se faz ela muito presente nessa área do conhecimento, com exceção da lógica formal exposta em livros correspondentes. Todavia, pode ela ser encontrada no já clássico livro de Robert Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, no qual se lê, expressamente, e se percebe, nitidamente, esse tipo de generalização com o intuito de se conferir caráter científico à argumentação. Veja-se, nesse sentido, a descrição da lei de colisão entre princípios e as relações de precedência entre eles[9], da máxima da proporcionalidade[10], da ideia de sopesamento[11], etc.
No que diz com o compromisso com crenças parece ser o caso de se confiar em alguns dogmas que se encontram, ou não, ao menos no direito, positivados. Aqui se manifestam, ao lado das normas jurídicas, que são os dogmas do direito por excelência, critérios de resolução de conflito aparente de normas, especialmente aquele referente ao conflito entre norma constitucional e norma infraconstitucional, e também, por muito tempo, a atribuição de efeitos à declaração de inconstitucionalidade, se ex tunc ou ex nunc.
A perplexidade que pode ser produzida pelo que vem de ser escrito reside em que se a ciência do direito é constituída por dogmas, e sobre estes não há possibilidade de discussão, como então seria possível problematizar temas inerentes à matéria dogmática do Direito Constitucional?
A possibilidade de problematização, já apontada por REALE[12] e resumida em frase de rara felicidade, segundo a qual “o mesmo problematicismo, que cerca a nomogênese jurídica, lateja no bojo da regra jurídica positivada”, encontra justificativa na existência, no texto constitucional, de normas que veiculam princípios referentes a direitos fundamentais, princípios esses carregados com doses cavalares de valor.
Nesse quadro, a norma constitucional é dogma para os fins de ser tratada como ponto de partida de toda reflexão que se leve a cabo no processo de decisão ou adjudicação, mas que comporta, por sua própria estrutura, problematização. A só-existência desse tipo de norma é que permite, então, afirmar, não sem alguma cautela, que o ensino dos direitos fundamentais ocorre com a junção da dogmática e da própria zetética, uma não excluindo a outra, mas sim complementando uma a outra, ou, nas palavras mais adequadas de PAULINO, “... em sutil equilíbrio dinâmico”[13].
Em uma sociedade democrática os valores a serem compartilhados pelos membros da comunidade científico-jurídica, portanto, das ciências humanas, podem ser identificados com a organização do Estado e os direitos fundamentais, compromissos esses que, por certo, não bastam constar de normas positivadas, mas necessitam, antes, de um compromisso político de respeito a eles.
E por último, mas não menos importante, o paradigma em sentido estrito, também denominado, por KUHN, de exemplares, soluções concretas produzidas pelas decisões judiciais ou mesmo extrajudiciais e que podem ser encontradas, pelo estudante de direito, nos manuais e nas revistas especializadas, seja sob a forma de simples descrição, seja sob a forma de problematização, esta última que, no caso do Brasil, é mais difícil de ser encontrada, pois a decisão judicial é como que tomada como verdade absoluta a respeito do tema, o que pode ser fruto do espírito conciliador que se manifesta também no pesquisador.










4. conclusões
O que vem de ser exposto permite, sem prejuízo de outras, algumas conclusões. Indico, aqui, quatro delas: a) podemos pensar em que há, atualmente, alguns paradigmas referentes aos direitos fundamentais; b) o primeiro deles é, na teoria do direito, é o pós-positivismo a reaproximação do direito e da moral; c) o segundo deles é, na teoria do direito constitucional, o neoconstitucionalismo; d) o terceiro deles é, na teoria dos direitos fundamentais: d.1) primeiro o direito penal como protetor dos direitos fundamentais; d.2) segundo o surgimento dos direitos fundamentais de igualdade e de liberdade das diferenças (direito coletivo).
A complexidade da sociedade moderna permite pensar em que há não apenas um paradigma, mas sim vários a conviver e a orientar a produção da teoria e da prática jurídicas.
Pós-positivismo é o nome que se confere à teoria do direito que propõe a aproximação entre o direito e a moral, o que demonstra que a história desconhece a linha reta (PAZ), pois que essa postura epistemológica pode ser identificada com um afastamento do positivismo formal de Kelsen e a construção de uma teoria do positivismo legal inclusivo[14], no qual há a possibilidade de se interpretar a norma jurídica por meio dos argumentos de justiça, correção e princípios[15].
Neoconstitucionalismo é outra palavra bastante utilizada pela teoria, e significa, basicamente, a especificidade da interpretação constitucional, que se representa pelos tópicos: a) princípios versus normas; b) ponderação versus subsunção; c) Constituição versus independência do legislador; d) juízes versus liberdade do legislador[16].
A proteção dos direitos fundamentais pelo direito penal em nível nacional e internacional se dá por meio dos denominados mandados expressos de criminalização, positivados em normas constitucionais que determinam ao legislador tipificar como crimes condutas violadores desses direitos, conforme faz exemplo o disposto no artigo 5, incisos XLI, XLII e XLIII, da Constituição.
A igualdade e a liberdade das diferenças leva em conta a forma peculiar de viver das pessoas, que em geral é diferente da sociedade majoritária, enquadrando-se como titulares desses direitos tanto as minorias quanto os grupos vulneráveis. Tem como saudável efeito o surgimento de direitos coletivos, cujos titulares são os grupos sociais, v.g., direitos culturais.
Finalizo com uma passagem de Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, pois que aqui estamos a tratar de interpretações: pão ou pães é questão de opiniães.
Muito obrigado.




[1] In RDA, v. 217, jul/set 1999, p. 55-66.

[2] Segundo Luhmann: “'International', indeed, no longer refers to a relation between two (or more) nations but to the political and the economic problems of the global system”, Globalization or world society: how to conceive of modern society?, in International Review of Sociology, mar 97, v. 7, issue 1.
[3] A estrutura das revoluções científicas, Perspectiva, SP, 2012.
[4] “Disciplinar porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma disciplina particular; ‘matriz’ porque é composta de elementos ordenados de várias espécies, cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada”, idem, p. 226.
[5] Idem, p. 229.
[6] Idem, p. 230.
[7] Idem, p. 231.
[8] Idem, p. 234.
[9] ALEXY, Robert, Teoria dos direitos fundamentais, Malheiros, SP, 2008, p. 94-103.
[10] Idem, p. 116-120.
[11] Idem, 163-165.
[12] REALE, Miguel, Ciência do direito e dogmática jurídica, in O direito como experiência, Saraiva, SP, 2010, p. 123-145 (140).
[13] PAULINO, Gustavo Smizmaul, O ensino do direito em crise, Sergio Antonio Fabris, Porto Alegre, 2008, p. 149.
[14] “On this view, which we have called inclusive legal positivism, moral values and principles count among the possible grounds that a legal system might accept for determining the existence and content of valid laws”, Inclusive legal positivism, W. J. Waluchow, Clarendon Press, Oxford, 1994, p. 82.
[15] ALEXY, Robert, Conceito e validade do direito, Martins Fontes, SP, 2011.
[16] Tudo conforme POZZOLO, Susanna, Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional, Doxa, 21-II, 1998, p. 339-353.

sábado, 6 de julho de 2013

sábado, 27 de abril de 2013


PEC 33/11: algumas considerações

 
É sabido no mundo jurídico que se deve analisar, doutrinariamente, apenas aqueles diplomas legislativos já existentes, se proposta de emenda constitucional já promulgada e se projeto de lei já sancionado, e isso mesmo sem embargo da possibilidade de controle de constitucionalidade de proposta de emenda tendente a abolir cláusula pétrea, pois esta situação é, por assim dizer, bastante rara de acontecer. Contudo, a relevância da questão jurídica trazida com a PEC 33/11, além de permitir, exige daqueles que fazem parte dessa grande engrenagem que faz funcionar o sistema jurídico uma reflexão mais detida a respeito de seu conteúdo, e isso mesmo a despeito de não vir ela, a tal PEC 33/11, a ser promulgada.
A PEC 33/11 pretende alterar os artigos 97, 103-A e 102 e seus parágrafos, na ordem fornecida pela redação original. Com relação ao artigo 97, a proposta é de que a reserva de plenário para se declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, no que se refere ao quórum, seja aumentado da atual maioria absoluta para quatro quintos dos membros dos respectivos tribunais.
No que diz com o artigo 103-A, que trata da súmula vinculante, a proposta muda a redação do seu caput e acrescenta a ele novos três parágrafos. Assim, o caput exigiria à proposição de súmula vinculante o quórum de quatro quintos, e não mais de dois terços, e a sua aprovação dependeria do Congresso Nacional. O § 1 da proposta preceitua que a súmula deverá guardar estrita identidade com as decisões precedentes, não podendo exceder às situações que deram ensejo à sua criação. O § 2 da proposta repete a redação do atual § 1. O § 3 da proposta mantém a redação do atual § 2. Os parágrafos 4, 5  e 6 da proposta trazem a novidade referente à aprovação da súmula pelo Congresso Nacional, que terá o prazo de noventa dias para deliberar, em sessão conjunta, por maioria absoluta, sobre o efeito vinculante da súmula, contados a partir do recebimento do processo, formado pelo enunciado e pelas decisões precedentes, sendo que a não deliberação implicará sua aprovação tácita. O § 6 repete a redação do atual § 3, acrescentando a ele apenas a condicionante da aprovação do efeito vinculante pelo Congresso Nacional.
Ao § 2, do artigo 102, são acrescidos os parágrafos A, B e C, mantidos os parágrafos 1 e 3. No § 2-A a redação prevê que nas decisões definitivas de mérito proferidas pelo STF nas ações diretas de inconstitucionalidade que declarem a inconstitucionalidade material de emendas à Constituição Federal as decisões não produzem imediato efeito vinculante e eficácia contra todos, e serão encaminhadas à apreciação do Congresso Nacional que, manifestando-se contrariamente à decisão judicial, deverá submeter a controvérsia à consulta popular. O § 2-B trata de aspectos formais da manifestação do Congresso Nacional, tais como a sessão conjunta, quórum de três quintos de seus membros e prazo de noventa dias, ao fim do qual, se não concluída a votação, prevalecerá a decisão do STF com efeito vinculante e eficácia contra todos. O § 2-C proíbe a suspensão da eficácia de Emenda à Constituição por medida cautelar pelo STF.
Esse o quadro normativo que se desenha no Parlamento.
Há razões manifestas e latentes que subjazem a essa proposta. Aqui tratar-se-á apenas das razões manifestas; as latentes bem podem ser objeto de análise pela ciência política, ramo do conhecimento que dispõe de ferramentas mais adequadas a tal empresa.
A análise a ser aqui empreendida pode ser dividida em política e jurídica. A análise política pode ser feita levando-se em consideração o estágio atual da proposta no Parlamento, isto é, a justificação da proposta de emenda constitucional, o parecer do relator e os votos discordantes de sua admissibilidade.
O ponto central da justificação da proposta aqui analisada é uma mistura de  judicialização das relações sociais e ativismo judicial. Para o parlamentar proponente, há uma judicialização das relações sociais porque a Constituição atual é analítica, e o ativismo judicial significa um comportamento proativo dos membros do Poder Judiciário, que se representa pela emissão de decisões que vão além do caso concreto, criando normas que não passaram pelo crivo do legislador. O proponente lança, como apoio à sua tese, decisões proferidas pelo STF e pelo TSE, v.g., infidelidade partidária, verticalização das coligações partidárias, redução de vagas de vereadores e súmula vinculante das algemas.
Como se pode perceber, em jogo está a distinção política/direito, que se traduz, atualmente, pela distinção parlamento/jurisdição constitucional e, sistemicamente, pelos sistemas político e jurídico.
A justificação ofertada como alicerce para a proposta de emenda constitucional ora esquadrinhada não se sustenta por uma análise mais detida de seus próprios termos.
O incômodo maior do Parlamento parece se prender às questões envolvendo direito eleitoral, e a partir daí faz-se uma generalização inadequada dos outros temas tratados pela jurisdição constitucional. Por exemplo, quando a justificação do proponente afirma que o ativismo judicial significa a emissão de decisões que vão além do caso concreto, faz vista grossa ao traço mais forte do exercício da jurisdição constitucional, que é exatamente o de proferir decisão no controle abstrato, que nada tem a ver com caso concreto –por certo que aqui também deve-se dar um destaque à objetivização do recurso extraordinário e o mais completo desuso em que caiu a prerrogativa do Senado Federal prevista no artigo 52, X, da Constituição, mas essa não parece ter sido a preocupação do parlamentar proponente.
Pois bem, analisando-se politicamente esse ponto, pode-se afirmar que não há intromissão indevida da jurisdição constitucional no Parlamento, e isso porque, quando a primeira emite decisão de caráter constitucional, em geral trata de proteger direito fundamental – e aqui não se está a falar que a jurisdição constitucional é mais apta que o Parlamento a esse fim –, por exemplo, direito das minorias parlamentares e mesmo político-partidárias. Ao decidir nessa direção, o STF, que ocupa o centro do sistema jurídico, reforça o código inerente ao sistema político, qual seja, governo/oposição, aprofundando, dessa maneira, o grau de diferenciação funcional exigido dos sistemas pela sociedade moderna.
Em outros casos envolvendo a adjudicação de direitos sociais e coletivos, v.g., direito de greve de servidor público, de fato há como que uma transferência de responsabilidade do Parlamento para a jurisdição constitucional, o que ocorre, talvez, no plano das razões latentes, pelo instinto de auto-preservação dos componentes do Parlamento, que optam, mediante seleção dos temas a serem tratados pelo sistema político, por não discutir e votar temas sensíveis à política, que possam fazer perder votos, o que, no sistema jurídico é marcado pela pecha de casos difíceis. E aí a jurisdição constitucional, provocada, vem e decide, e acaba por levar a culpa: culpada por decidir.
O problema é que há um aumento tremendo de demandas cuja conflituosidade transcende o conhecido binômio processual autor-réu, referindo-se a uma titularidade difusa de direitos, novos e velhos, por parte de grupos sociais que lutam por reconhecimento, os quais, por razões óbvias, não podem simplesmente ficar à mercê da vontade do Parlamento em legislar ou não legislar: sim, porque se no sistema jurídico há a presença da dupla negativa da proibição do non liquet, no sistema político há a presença da tripla negativa da não proibição do non liquet, vale dizer, o sistema político pode se dar o luxo de não decidir.
Ao problema pode ser acrescida a complexidade representada pelo atual domínio das comissões temáticas existentes no Parlamento, as quais, por deliberação de uma minoria, não permitem que determinados temas sensíveis à política sejam sequer levados a debate no plenário, o que acaba por produzir um efeito bastante peculiar, qual seja, a tirania da minoria parlamentar, e não mais da maioria. Problemas, como se vê, atinentes ao próprio funcionamento do Parlamento, mas que respingam, fortemente, no sistema jurídico, pois é este que é chamado a decidir, num plano de transferência indevida de responsabilidade e sobrecarga a um poder que muita vez não está preparado, por razões várias, a dispensar tratamento a tema que envolve uma hipercomplexidade de conteúdo1. Na tentativa de se desincumbir dessa tarefa realiza audiência pública.
Há, ainda, dois argumentos que devem ser aqui analisados, quais sejam: a) o povo como agente que referenda decisão judicial; b) quem dá a última palavra.
Com relação ao povo, parece a este autor que o enfoque conferido pelo proponente da proposta é um tanto ou quanto inadequado, seja, politicamente, pelo fato de que democracia, na sociedade atual, não é governo do povo, pelo povo ou para o povo, mas sim, e singelamente, a presença do código governo/oposição que orienta o sistema político; seja, juridicamente, pelo fato de que a compreensão que se deve ter da soberania popular é aquela referente a que, soberania popular é a que se encontra positivada na Constituição, formada por vários insumos, por vários elementos e canalizada à promoção de um Estado Democrático de Direito, fórmula que, se peca pela vagueza de seus próprios termos, aqui é suficiente a dar conta de impor limites à vontade do povo, a qual, ao menos para este autor, muita vez não se quer nem mesmo conhecer, temendo o que daí possa advir.
Isso quer dizer que no estágio atual de evolução da sociedade mundial a democracia constitucional se sobrepõe à soberania popular, o que quer dizer que esta deve ser exercida segundo as regras constitucionalmente estabelecidas, portanto, respeitar cláusula pétrea, aqui representada pelo princípio da separação de poderes.
Agora o tema sobre quem dá a última palavra. Esse tema encontra-se na base da discórdia entre Parlamento e jurisdição constitucional, e é tratado, ao que parece, com mais percuciência, pela política do que pelo jurídico, o que pode ser exemplificado pela pena de autores estrangeiros como Jeremy Waldron e Mark Tushnet e nacional como Conrado Hübner, todos, diga-se de passagem, com a maestria que lhes é inerente.
Todavia, essa interrogação apresenta um falso problema, e isso porque, conforme escreve Hanna Pitkin, talvez a maior teórica da representação política2, não há última palavra3. Essa afirmação parece cair como uma luva à descrição da sociedade moderna como complexa e contingente, vale dizer, a complexidade e a contingência da sociedade atual como que impedem que haja uma última palavra em temas que envolvam os conhecidos grandes desacordos morais nela presentes: futuro aberto, tudo pode ser de outra maneira e impossibilidade de enumeração exaustiva das relações sociais possíveis são as marcas da sociedade.
Exemplo do que vem de ser escrito é a atual decisão proferida pelo STF na Reclamação n. 4374, que reviu posicionamento anterior e declarou inconstitucionais o artigo 20, § 3, da Lei n. 8742/93 e o artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso, com base na mudança das circunstâncias fático-econômicas desde a promulgação das leis até o momento atual vivido. Isso equivale a dizer que, se o próprio STF pode mudar sua compreensão a respeito dos temas, também o Parlamento tem essa prerrogativa, aqui, talvez, de forma muito mais ampla do que a possível de se manifestar na jurisdição constitucional.
Portanto, e não sendo esta sede a mais adequada para se estender sobre o assunto4, o estado objetivo de coisas sempre pode ser alterado, seja por obra do Parlamento, seja por obra da jurisdição constitucional.
Essa, então, a breve análise política.
A análise jurídica, de caráter dogmático, demanda a construção de sentido das normas propostas no projeto de emenda constitucional.
Essa análise pode ser feita levando-se em conta tanto aspectos formais quanto materiais. No que diz com o aspecto formal, por exemplo, a novidade fica por conta do aumento do quórum exigido para se declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, de maioria absoluta para quatro quintos, e para aprovar súmula vinculante, de dois terços para quatro quintos de seus membros.
A razão de ser dessa proposta talvez resida na tentativa de se conferir uma maior legitimidade às decisões que declaram a inconstitucionalidade de determinadas espécies normativas, passando dos atuais seis para nove votos dos onze ministros.
O estabelecimento de quórum para um processo de deliberação depende da própria matéria a ser deliberada, por exemplo, no sistema político há a exigência de maioria absoluta para a elaboração de lei complementar e de três quintos para a de emenda constitucional. A exigência constante da proposta, portanto, é maior do que aquela exigida para a criação do talvez mais nobre ato normativo do processo legislativo, o que já demonstra, de per si, uma certa desproporcionalidade de conteúdo.
Além disso, ao se exigir o quórum de quatro quintos para o caso em tela, corre-se o sério risco de se ter de conviver com um ato normativo que possa ser considerado inconstitucional por oito ministros, maioria mais do que absoluta dos membros do STF – isso para ficar apenas no STF –, mas que, por não ter atingido o quórum de quatro quintos, deve continuar a existir no sistema jurídico, fazendo com que a forma prevaleça sobre a matéria em sentido inverso do que comumente ocorre quando se declara a inconstitucionalidade formal de um ato normativo, vale dizer, nos termos da proposta a forma acaba por validar uma matéria considerada inconstitucional por uma maioria mais do que absoluta.
Nessa linha o quórum proposto na emenda constitucional é, no mínimo, inadequado, pois que apresenta uma desproporcionalidade sem possibilidade de justificação racional entre meio e fim, pois que, na conhecida formulação montesquiana, a forma deve ser a garantia da liberdade, e não o seu aniquilamento. O mesmo raciocínio vale para a aprovação da súmula vinculante, que também já exige um quórum de dois terços, portanto, acima da maioria absoluta.
A parte que tem causado uma maior polêmica no milieu jurídico é a referente à exigência de se submeter, ao Parlamento, a decisão judicial que declarou a inconstitucionalidade material de emenda constitucional, bem assim, a que propõe a súmula vinculante. Cria, nesses termos, uma condição para que a decisão judicial surta efeitos: no caso da inconstitucionalidade material da emenda constitucional, à vontade do Parlamento, se contrária à da jurisdição constitucional, soma-se a do povo, que manifestar-se-á em consulta popular a respeito do tema; no caso da súmula vinculante a proposta silencia.
Em geral cita-se como origem desse tipo de norma o artigo 96, parágrafo único, da Constituição de 1937, que dispunha: No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem estar do povo, à promoção ou defesa do interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento; se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal. Norma, evidentemente, produzida em tempos de crise constitucional expressa na fórmula do Estado Novo5.
Entretanto, talvez a origem do instituto seja encontrada em tempo mais remoto. É que há uma semelhança, ainda que por antonomásia, entre os institutos da Constituição de 1937 e o da proposta que ora se analisa e o référé législatif, vigente na França no período revolucionário e napoleônico6. Havia o referendo obrigatório e facultativo e ambos se referiam à impossibilidade de o juiz interpretar a lei, devendo apenas aplicá-la, ficando sob encargo dos legisladores a sua interpretação, método mais conhecido como interpretação autêntica.
Essa forma de proceder partia de uma concepção rígida de separação dos poderes, presente em vários discursos dos constituintes franceses, e que, ao separar normatização e jurisdição considerava a interpretação como uma fase da primeira. A desconfiança contra os juízes era tamanha que Robespierre chegou mesmo a afirmar: “ce mot de jurisprudence des Tribunaux... doit être effacé de notre langue7.
Pois bem, partindo-se da premissa de que os institutos guardam uma semelhança em termos de conformação, bem podendo falar-se de um référé législatif à brasileira, certo é que uma tal concepção do princípio da separação de poderes não mais tem lugar na sociedade moderna, sendo mesmo de se considerar que a independência e harmonia entre eles seja uma aquisição evolutiva da modernidade, o que vem positivado no artigo 2, da Constituição e tomado como cláusula pétrea, núcleo eterno e intangível no artigo 60, § 4, III, do mesmo texto constitucional.
Nessa linha de argumentação, a independência e harmonia entre os poderes é uma tradução dogmática do postulado sistêmico segundo o qual a Constituição é o acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico, pois é a independência entre eles que permite a eles operarem de forma fechada, isto é, decidir com base apenas em suas estruturas, e é a harmonia entre eles que permite a eles serem cognitivamente abertos, isto é, dispostos à aprendizagem. Esse funcionamento é que permite caracterizar um sistema como diferenciado funcionalmente, o que parecia ainda não existir na França do final do século XVIII e início do século XIX.
Então, a jurisdição constitucional, ao proferir decisões que não devam se submeter ao crivo do Parlamento, nada mais faz do que prestigiar a diferenciação funcional do sistema jurídico, e o Parlamento, ao não submeter a decisão judicial ao seu crivo,  de igual modo também faz com que a diferenciação funcional do sistema político seja incrementada. Portanto, a Constituição atual cumpre a contento esse papel de acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico.
Daí porque se afigura inadequada a justificativa de que o projeto de emenda constitucional n. 33/11 se dispõe a prestigiar o princípio da separação dos poderes. Pelo contrário, ao condicionar a decisão emitida pela jurisdição constitucional à deliberação do Parlamento, acaba por, dogmaticamente, ferir o aspecto da harmonia da relação que se deve entre eles estabelecer, e sistemicamente, por desdiferenciar funcionalmente os sistemas político e jurídico.
Vai daí que a adequada interpretação do texto constitucional faz remeter o termo “separação de poderes” positivado no artigo 60, § 4, III, ao que previsto no artigo 2, do mesmo texto, que se escreve pela sentença “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Separação, então, significa independência e harmonia.
Nesse quadro, a proposta de emenda constitucional que condiciona uma decisão proferida pela jurisdição constitucional imediatamente ao Parlamento e mediatamente ao povo, atinge o núcleo essencial da cláusula pétrea representada pelo princípio da separação de poderes, pois que é da própria essência da jurisdição, seja ela constitucional ou não, decidir sem a possibilidade de que qualquer amarra seja a ela imposta, com exceção, por óbvio, dos recursos cabíveis.
Por fim, a proibição de que o STF defira medida liminar para suspender a eficácia de emenda à Constituição, ao que parece, seja monocraticamente, seja pelo Plenário, implica, além de uma diminuição do próprio poder de julgar, uma certa despreocupação com um recurso bastante escasso na sociedade atual e que é mais conhecido por tempo. Se a busca da emenda é uma maior legitimação das decisões proferidas pela jurisdição constitucional, talvez fosse mais adequado permitir-se o deferimento de medida liminar, em caso que tal, apenas pelo Plenário do STF.

SCHARPF, Fritz W., Judicial review and the political question: a functional analysis, in Yale Law Journal, march 1966, v. 75, n. 4.
PTIKIN, Hanna, The concept of representation, University of California Press, 1972.
PITKIN, Hanna, Obligation and consent, in The American Political Science Review, v. 59, n. 4, dec. 1965.
Para um exame mais aprofundado, ver SILVA, Paulo Thadeu Gomes da, Direitos fundamentais: contribuição para uma teoria geral, Atlas, SP, 2010, em especial o capítulo intitulado Um pouco sobre a jurisdição constitucional, p. 71-88.
Para uma análise mais detida, ver SILVA, Paulo Thadeu Gomes da, Constituição, sistema jurídico e questões políticas, Lumen Juris, RJ, 2011.
FRATE, Paolo Alvazzi del, Giurisprudenza e référé législatif in Francia nel periodo revoluzionario e napoleonico, Giappichelli Editores, Torino, 2005.
Idem, p. 35.