terça-feira, 17 de setembro de 2013
quinta-feira, 12 de setembro de 2013
PALESTRA NA UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO - CAMPO GRANDE/MS
PALESTRA
UCDB
Os direitos fundamentais
na sociedade mundial e a emergência de um novo paradigma
1. direitos fundamentais
Muito se fala e se escreve sobre direitos
fundamentais. Pode-se mesmo afirmar que hoje vivemos um tempo em que quase
todas as relações são fundamentalizadas. Fenômeno bastante recente, que há 20
anos não se fazia presente. Também aqui dá-se por compreendido o significado de
um termo bastante complexo. Mais uma vez parece se manifestar o lugar-comum, a platitude
com referência a um termo que, na minha compreensão, merece uma abordagem
científica e, portanto, complexa.
Nessa linha, proponho dissecar o que vem a
ser direito fundamental. Para Alexy, em um texto não muito discutido[1], Direitos
fundamentais no Estado constitucional democrático, um direito humano pode ser
fundamental se apresentar as seguintes marcas: a) universalidade; b)
moralidade; c) preferencialidade; d) fundamentalidade; e) abstração.
Essas marcas fazem com que se impeça a
inflação dos direitos fundamentais.
2. sociedade mundial
Por sociedade mundial se compreende o
sistema social mundial, ou seja, a forma de reprodução da sociedade de todo o
mundo[2],
na qual os regionalismos não interferem de forma decisiva. Essa forma de observar
a sociedade é de caráter ocidental, o que deixaria de fora da sociedade mundial
aquelas sociedades que não fossem, ou que não reproduzissem os valores da
sociedade ocidental, vale dizer, da sociedade pós-industrial e que positiva
direitos fundamentais de liberdade e alguns de igualdade, isto é, sociedades
com uma semântica própria, tais quais Japão e China: mas estas, também, não são
capitalistas? A resposta positiva indica que, a despeito da existência de
particularidades que possam informar as estruturas sociais de determinadas
sociedades, elas também acabam por fazer parte da sociedade mundial.
A sociedade dita moderna é diferenciada
funcionalmente, ou seja, é composta por sistemas sociais que têm uma função
diferente de cada um: por exemplo, sistema jurídico, sistema político, sistema
econômico, etc.
A sociedade brasileira parece se inserir
nessa descrição, pois pode ser considerada como diferenciada funcionalmente,
ainda que tenha um caminho a percorrer em direção a uma mais completa
diferenciação funcional. Seus sistemas sociais, tanto quanto possível, se
reproduzem com base em suas próprias estruturas.
Mas, há um aspecto que gostaria de
ressaltar e que reputo relevante para a compreensão do tema: é a presença, no
interior da sociedade mundial, que é diferenciada funcionalmente, de sociedades
tradicionais, o que se encontra, em maior número, na América Latina e,
especialmente, no Brasil. Falo, por óbvio, dos índios e dos quilombolas.
A presença dessas sociedades tradicionais
no interior da sociedade brasileira diferenciada funcionalmente injeta uma
enorme dose de complexidade na reflexão que deve ser feita sobre ou a partir do
tema, sim, porque há diferença entre refletir sobre e refletir a partir, por
exemplo, Adorno, em seu Minima Moralia, propôs-se a refletir a partir da vida
lesada, pois que, na condição de judeu exilado, viveu essa realidade, é uma
referência vivida.
Na minha maneira de observar o tema posso
afirmar que escrevo a partir de uma realidade vivida da e na sociedade
tradicional, mais especificamente, da sociedade indígena, e isso por conta da
defesa constitucional dos direitos indígenas que fiz e faço na condição de
procurador da república.
As sociedades tradicionais são autárquicas
ou autônomas e mantêm uma relação heterárquica com a sociedade oficial ou
ocidental, e não hierárquica, ou seja, encontram-se em pé de igualdade naquilo
que diz com o reconhecimento de direitos. A assimetria nas relações de poder
decorre da não concretização de direitos, o que é outra história, pois que eles
já se encontram positivados na ordem jurídica.
No desenvolvimento das ideias, pode-se
pensar em que a sociedade brasileira diferenciada funcionalmente, isto é, a
sociedade ocidental, trata todos aqueles que não conseguem acessar seus
sistemas parciais pela lógica inclusão/exclusão, e produz uma calamidade
representada pela negligência. Essa observação vem acompanhada de um perverso
evento que se denomina de inclusão tardia. De se notar, entretanto, que essa
negligência, se referida aos índios, não significa que todos eles sejam
negligenciados por uma exclusão, e isso porque não são todos os índios, sem
embargo de séculos de contato com a sociedade envolvente, que querem acessar
esses sistemas sociais, vale dizer, há sociedades indígenas que simplesmente
querem reproduzir-se por operações baseadas não na diferenciação funcional, mas
sim com base em estruturas tribais.
Essa abordagem sociológica encontra
tradução na dogmático-jurídico-constitucional, cujo fundamento de validade são
as normas dos artigos 208, 215, 216 e 231, as quais positivam o direito à
autonomia de autorreprodução social, o que, no dizer do jurídico, significa
proteger direitos culturais, formas de ser e de fazer, tradições, línguas e
costumes, ou seja, a Constituição de 1988 permite afirmar que, por meio de suas
normas, há o reconhecimento da cultura como elemento diferenciador de pessoas e
que deve ser protegida. A cultura, sociologicamente, substitui, no século XX, a
solidariedade do século XIX, que por sua vez substituiu a felicidade humana dos
séculos XVII e XVIII.
3. paradigma
A palavra paradigma é utilizada, a torto e
a direito, pela teoria, mas sem a preocupação com o seu significado. Dá-se por
compreendido um conceito de grande complexidade para a ciência. Talvez essa
postura epistemológica seja adequada se se pensar em que a palavra fala por si,
não havendo, portanto, necessidade de se esclarecer, de forma mais detida, o
que ela significa. Esse argumento se relaciona ao coloquial lugar-comum ou, de
forma mais sofisticada, platitude.
Todavia, se estamos a fazer uma abordagem
científica ao tema proposto, então me parece imprescindível indicarmos o que
entendemos por paradigma para que a comunicação possa se estabelecer entre
palestrante e ouvintes.
Paradigma, assim, é, para Thomas Kuhn[3], uma
matriz disciplinar[4]. Esta, de sua vez, se
constitui basicamente de quatro elementos: a) generalização simbólica; b)
compromissos coletivos com crenças; c) valores; d) o próprio paradigma ou
exemplares.
A generalização simbólica é representada
por fórmulas descritas pela lógica formal, por exemplo, f = ma[5]; compromissos coletivos
com crenças, por exemplo, o calor é a energia cinética das partes constituintes
dos corpos[6];
os valores propiciam aos especialistas em ciências naturais experimentar um
sentimento de pertencimento a uma comunidade global[7]; e
os exemplares, que são “as soluções concretas de problemas que os estudantes
encontram desde o início de sua educação científica, seja nos laboratórios,
exames ou no fim dos capítulos de manuais científicos ou mesmo nas publicações
periódicas”[8].
Em um exercício de transposição desses
argumentos ao direito, ou à ciência do direito, pode-se afirmar que, com
relação à generalização simbólica, não se faz ela muito presente nessa área do
conhecimento, com exceção da lógica formal exposta em livros correspondentes.
Todavia, pode ela ser encontrada no já clássico livro de Robert Alexy, Teoria
dos direitos fundamentais, no qual se lê, expressamente, e se percebe,
nitidamente, esse tipo de generalização com o intuito de se conferir caráter
científico à argumentação. Veja-se, nesse sentido, a descrição da lei de
colisão entre princípios e as relações de precedência entre eles[9],
da máxima da proporcionalidade[10],
da ideia de sopesamento[11],
etc.
No que diz com o compromisso com crenças
parece ser o caso de se confiar em alguns dogmas que se encontram, ou não, ao
menos no direito, positivados. Aqui se manifestam, ao lado das normas
jurídicas, que são os dogmas do direito por excelência, critérios de resolução
de conflito aparente de normas, especialmente aquele referente ao conflito
entre norma constitucional e norma infraconstitucional, e também, por muito
tempo, a atribuição de efeitos à declaração de inconstitucionalidade, se ex tunc ou ex nunc.
A perplexidade que pode ser produzida pelo
que vem de ser escrito reside em que se a ciência do direito é constituída por
dogmas, e sobre estes não há possibilidade de discussão, como então seria
possível problematizar temas inerentes à matéria dogmática do Direito
Constitucional?
A possibilidade de problematização, já
apontada por REALE[12] e
resumida em frase de rara felicidade, segundo a qual “o mesmo problematicismo,
que cerca a nomogênese jurídica, lateja no bojo da regra jurídica positivada”,
encontra justificativa na existência, no texto constitucional, de normas que
veiculam princípios referentes a direitos fundamentais, princípios esses
carregados com doses cavalares de valor.
Nesse quadro, a norma constitucional é
dogma para os fins de ser tratada como ponto de partida de toda reflexão que se
leve a cabo no processo de decisão ou adjudicação, mas que comporta, por sua
própria estrutura, problematização. A só-existência desse tipo de norma é que
permite, então, afirmar, não sem alguma cautela, que o ensino dos direitos
fundamentais ocorre com a junção da dogmática e da própria zetética, uma não
excluindo a outra, mas sim complementando uma a outra, ou, nas palavras mais
adequadas de PAULINO, “... em sutil equilíbrio dinâmico”[13].
Em uma sociedade democrática os valores a
serem compartilhados pelos membros da comunidade científico-jurídica, portanto,
das ciências humanas, podem ser identificados com a organização do Estado e os
direitos fundamentais, compromissos esses que, por certo, não bastam constar de
normas positivadas, mas necessitam, antes, de um compromisso político de
respeito a eles.
E por último, mas não menos importante, o
paradigma em sentido estrito, também denominado, por KUHN, de exemplares,
soluções concretas produzidas pelas decisões judiciais ou mesmo extrajudiciais
e que podem ser encontradas, pelo estudante de direito, nos manuais e nas
revistas especializadas, seja sob a forma de simples descrição, seja sob a
forma de problematização, esta última que, no caso do Brasil, é mais difícil de
ser encontrada, pois a decisão judicial é como que tomada como verdade absoluta
a respeito do tema, o que pode ser fruto do espírito conciliador que se
manifesta também no pesquisador.
4. conclusões
O que vem de ser exposto permite, sem
prejuízo de outras, algumas conclusões. Indico, aqui, quatro delas: a) podemos
pensar em que há, atualmente, alguns paradigmas referentes aos direitos
fundamentais; b) o primeiro deles é, na teoria do direito, é o pós-positivismo a
reaproximação do direito e da moral; c) o segundo deles é, na teoria do direito
constitucional, o neoconstitucionalismo; d) o terceiro deles é, na teoria dos
direitos fundamentais: d.1) primeiro o direito penal como protetor dos direitos
fundamentais; d.2) segundo o surgimento dos direitos fundamentais de igualdade
e de liberdade das diferenças (direito coletivo).
A complexidade da sociedade moderna permite
pensar em que há não apenas um paradigma, mas sim vários a conviver e a
orientar a produção da teoria e da prática jurídicas.
Pós-positivismo é o nome que se confere à
teoria do direito que propõe a aproximação entre o direito e a moral, o que
demonstra que a história desconhece a linha reta (PAZ), pois que essa postura
epistemológica pode ser identificada com um afastamento do positivismo formal
de Kelsen e a construção de uma teoria do positivismo legal inclusivo[14],
no qual há a possibilidade de se interpretar a norma jurídica por meio dos
argumentos de justiça, correção e princípios[15].
Neoconstitucionalismo é outra palavra
bastante utilizada pela teoria, e significa, basicamente, a especificidade da
interpretação constitucional, que se representa pelos tópicos: a) princípios
versus normas; b) ponderação versus subsunção; c) Constituição versus
independência do legislador; d) juízes versus liberdade do legislador[16].
A proteção dos direitos fundamentais pelo
direito penal em nível nacional e internacional se dá por meio dos denominados
mandados expressos de criminalização, positivados em normas constitucionais que
determinam ao legislador tipificar como crimes condutas violadores desses
direitos, conforme faz exemplo o disposto no artigo 5, incisos XLI, XLII e
XLIII, da Constituição.
A igualdade e a liberdade das diferenças
leva em conta a forma peculiar de viver das pessoas, que em geral é diferente
da sociedade majoritária, enquadrando-se como titulares desses direitos tanto
as minorias quanto os grupos vulneráveis. Tem como saudável efeito o surgimento
de direitos coletivos, cujos titulares são os grupos sociais, v.g., direitos
culturais.
Finalizo com uma passagem de Grande Sertão
Veredas, de Guimarães Rosa, pois que aqui estamos a tratar de interpretações:
pão ou pães é questão de opiniães.
Muito obrigado.
[2] Segundo Luhmann: “'International', indeed, no longer refers to a
relation between two (or more) nations but to the political and the economic
problems of the global system”, Globalization or world society: how to conceive
of modern society?, in International Review of Sociology, mar 97, v. 7, issue
1.
[4] “Disciplinar porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma
disciplina particular; ‘matriz’ porque é composta de elementos ordenados de
várias espécies, cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada”,
idem, p. 226.
[12] REALE, Miguel, Ciência do direito e dogmática jurídica, in O direito como experiência, Saraiva,
SP, 2010, p. 123-145 (140).
[13] PAULINO, Gustavo Smizmaul, O ensino do direito em crise, Sergio Antonio
Fabris, Porto Alegre, 2008, p. 149.
[14] “On this view, which we have called inclusive legal positivism, moral
values and principles count among the possible grounds that a legal system
might accept for determining the existence and content of valid laws”,
Inclusive legal positivism, W. J. Waluchow, Clarendon Press, Oxford, 1994, p.
82.
[16] Tudo conforme POZZOLO, Susanna, Neoconstitucionalismo y especificidad de
la interpretación constitucional, Doxa, 21-II, 1998, p. 339-353.
sábado, 6 de julho de 2013
Artigo publicado no jornal Carta Forense
As escolas de pensamento sobre os direitos humanos
http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/as-escolas-de-pensamento-sobre-os-direitos-humanos/6082
Artigo publicado no jornal Carta Forense
Lei da anistia aos imigrantes ilegais à luz dos direitos fundamentais
sábado, 27 de abril de 2013
PEC 33/11:
algumas considerações
É
sabido no mundo jurídico que se deve analisar, doutrinariamente, apenas aqueles
diplomas legislativos já existentes, se proposta de emenda constitucional já
promulgada e se projeto de lei já sancionado, e isso mesmo sem embargo da
possibilidade de controle de constitucionalidade de proposta de emenda tendente
a abolir cláusula pétrea, pois esta situação é, por assim dizer, bastante rara
de acontecer. Contudo, a relevância da questão jurídica trazida com a PEC
33/11, além de permitir, exige daqueles que fazem parte dessa grande engrenagem
que faz funcionar o sistema jurídico uma reflexão mais detida a respeito de seu
conteúdo, e isso mesmo a despeito de não vir ela, a tal PEC 33/11, a ser
promulgada.
A
PEC 33/11 pretende alterar os artigos 97, 103-A e 102 e seus parágrafos, na
ordem fornecida pela redação original. Com relação ao artigo 97, a proposta é
de que a reserva de plenário para se declarar a inconstitucionalidade de lei ou
ato normativo do Poder Público, no que se refere ao quórum, seja aumentado da
atual maioria absoluta para quatro quintos dos membros dos respectivos
tribunais.
No
que diz com o artigo 103-A, que trata da súmula vinculante, a proposta muda a
redação do seu caput e acrescenta a
ele novos três parágrafos. Assim, o caput
exigiria à proposição de súmula vinculante o quórum de quatro quintos, e não
mais de dois terços, e a sua aprovação dependeria do Congresso Nacional. O § 1
da proposta preceitua que a súmula deverá guardar estrita identidade com as
decisões precedentes, não podendo exceder às situações que deram ensejo à sua
criação. O § 2 da proposta repete a redação do atual § 1. O § 3 da proposta
mantém a redação do atual § 2. Os parágrafos 4, 5 e 6 da proposta trazem a novidade referente à
aprovação da súmula pelo Congresso Nacional, que terá o prazo de noventa dias
para deliberar, em sessão conjunta, por maioria absoluta, sobre o efeito
vinculante da súmula, contados a partir do recebimento do processo, formado
pelo enunciado e pelas decisões precedentes, sendo que a não deliberação
implicará sua aprovação tácita. O § 6 repete a redação do atual § 3,
acrescentando a ele apenas a condicionante da aprovação do efeito vinculante
pelo Congresso Nacional.
Ao
§ 2, do artigo 102, são acrescidos os parágrafos A, B e C, mantidos os
parágrafos 1 e 3. No § 2-A a redação prevê que nas decisões definitivas de
mérito proferidas pelo STF nas ações diretas de inconstitucionalidade que
declarem a inconstitucionalidade material de emendas à Constituição Federal as
decisões não produzem imediato efeito vinculante e eficácia contra todos, e
serão encaminhadas à apreciação do Congresso Nacional que, manifestando-se
contrariamente à decisão judicial, deverá submeter a controvérsia à consulta
popular. O § 2-B trata de aspectos formais da manifestação do Congresso
Nacional, tais como a sessão conjunta, quórum de três quintos de seus membros e
prazo de noventa dias, ao fim do qual, se não concluída a votação, prevalecerá
a decisão do STF com efeito vinculante e eficácia contra todos. O § 2-C proíbe
a suspensão da eficácia de Emenda à Constituição por medida cautelar pelo STF.
Esse
o quadro normativo que se desenha no Parlamento.
Há
razões manifestas e latentes que subjazem a essa proposta. Aqui tratar-se-á
apenas das razões manifestas; as latentes bem podem ser objeto de análise pela
ciência política, ramo do conhecimento que dispõe de ferramentas mais adequadas
a tal empresa.
A
análise a ser aqui empreendida pode ser dividida em política e jurídica. A
análise política pode ser feita levando-se em consideração o estágio atual da
proposta no Parlamento, isto é, a justificação da proposta de emenda
constitucional, o parecer do relator e os votos discordantes de sua
admissibilidade.
O
ponto central da justificação da proposta aqui analisada é uma mistura de judicialização das relações sociais e
ativismo judicial. Para o parlamentar proponente, há uma judicialização das
relações sociais porque a Constituição atual é analítica, e o ativismo judicial
significa um comportamento proativo dos membros do Poder Judiciário, que se
representa pela emissão de decisões que vão além do caso concreto, criando
normas que não passaram pelo crivo do legislador. O proponente lança, como
apoio à sua tese, decisões proferidas pelo STF e pelo TSE, v.g., infidelidade
partidária, verticalização das coligações partidárias, redução de vagas de vereadores
e súmula vinculante das algemas.
Como
se pode perceber, em jogo está a distinção política/direito, que se traduz,
atualmente, pela distinção parlamento/jurisdição constitucional e,
sistemicamente, pelos sistemas político e jurídico.
A
justificação ofertada como alicerce para a proposta de emenda constitucional
ora esquadrinhada não se sustenta por uma análise mais detida de seus próprios
termos.
O
incômodo maior do Parlamento parece se prender às questões envolvendo direito
eleitoral, e a partir daí faz-se uma generalização inadequada dos outros temas
tratados pela jurisdição constitucional. Por exemplo, quando a justificação do
proponente afirma que o ativismo judicial significa a emissão de decisões que
vão além do caso concreto, faz vista grossa ao traço mais forte do exercício da
jurisdição constitucional, que é exatamente o de proferir decisão no controle
abstrato, que nada tem a ver com caso concreto –por certo que aqui também
deve-se dar um destaque à objetivização do recurso extraordinário e o mais
completo desuso em que caiu a prerrogativa do Senado Federal prevista no artigo
52, X, da Constituição, mas essa não parece ter sido a preocupação do
parlamentar proponente.
Pois
bem, analisando-se politicamente esse ponto, pode-se afirmar que não há intromissão
indevida da jurisdição constitucional no Parlamento, e isso porque, quando a
primeira emite decisão de caráter constitucional, em geral trata de proteger
direito fundamental – e aqui não se está a falar que a jurisdição
constitucional é mais apta que o Parlamento a esse fim –, por exemplo, direito
das minorias parlamentares e mesmo político-partidárias. Ao decidir nessa
direção, o STF, que ocupa o centro do sistema jurídico, reforça o código
inerente ao sistema político, qual seja, governo/oposição, aprofundando, dessa
maneira, o grau de diferenciação funcional exigido dos sistemas pela sociedade
moderna.
Em
outros casos envolvendo a adjudicação de direitos sociais e coletivos, v.g.,
direito de greve de servidor público, de fato há como que uma transferência de
responsabilidade do Parlamento para a jurisdição constitucional, o que ocorre,
talvez, no plano das razões latentes, pelo instinto de auto-preservação dos
componentes do Parlamento, que optam, mediante seleção dos temas a serem
tratados pelo sistema político, por não discutir e votar temas sensíveis à
política, que possam fazer perder votos, o que, no sistema jurídico é marcado
pela pecha de casos difíceis. E aí a jurisdição constitucional, provocada, vem
e decide, e acaba por levar a culpa: culpada por decidir.
O
problema é que há um aumento tremendo de demandas cuja conflituosidade
transcende o conhecido binômio processual autor-réu, referindo-se a uma
titularidade difusa de direitos, novos e velhos, por parte de grupos sociais
que lutam por reconhecimento, os quais, por razões óbvias, não podem
simplesmente ficar à mercê da vontade do Parlamento em legislar ou não
legislar: sim, porque se no sistema jurídico há a presença da dupla negativa da
proibição do non liquet, no sistema
político há a presença da tripla negativa da não proibição do non liquet, vale dizer, o sistema
político pode se dar o luxo de não decidir.
Ao
problema pode ser acrescida a complexidade representada pelo atual domínio das
comissões temáticas existentes no Parlamento, as quais, por deliberação de uma
minoria, não permitem que determinados temas sensíveis à política sejam sequer
levados a debate no plenário, o que acaba por produzir um efeito bastante
peculiar, qual seja, a tirania da minoria parlamentar, e não mais da maioria.
Problemas, como se vê, atinentes ao próprio funcionamento do Parlamento, mas
que respingam, fortemente, no sistema jurídico, pois é este que é chamado a
decidir, num plano de transferência indevida de responsabilidade e sobrecarga a
um poder que muita vez não está preparado, por razões várias, a dispensar
tratamento a tema que envolve uma hipercomplexidade de conteúdo1.
Na tentativa de se desincumbir dessa tarefa realiza audiência pública.
Há,
ainda, dois argumentos que devem ser aqui analisados, quais sejam: a) o povo
como agente que referenda decisão judicial; b) quem dá a última palavra.
Com
relação ao povo, parece a este autor que o enfoque conferido pelo proponente da
proposta é um tanto ou quanto inadequado, seja, politicamente, pelo fato de que
democracia, na sociedade atual, não é governo do povo, pelo povo ou para o
povo, mas sim, e singelamente, a presença do código governo/oposição que
orienta o sistema político; seja, juridicamente, pelo fato de que a compreensão
que se deve ter da soberania popular é aquela referente a que, soberania
popular é a que se encontra positivada na Constituição, formada por vários
insumos, por vários elementos e canalizada à promoção de um Estado Democrático
de Direito, fórmula que, se peca pela vagueza de seus próprios termos, aqui é
suficiente a dar conta de impor limites à vontade do povo, a qual, ao menos
para este autor, muita vez não se quer nem mesmo conhecer, temendo o que daí
possa advir.
Isso
quer dizer que no estágio atual de evolução da sociedade mundial a democracia
constitucional se sobrepõe à soberania popular, o que quer dizer que esta deve
ser exercida segundo as regras constitucionalmente estabelecidas, portanto,
respeitar cláusula pétrea, aqui representada pelo princípio da separação de
poderes.
Agora
o tema sobre quem dá a última palavra. Esse tema encontra-se na base da
discórdia entre Parlamento e jurisdição constitucional, e é tratado, ao que
parece, com mais percuciência, pela política do que pelo jurídico, o que pode
ser exemplificado pela pena de autores estrangeiros como Jeremy Waldron e Mark
Tushnet e nacional como Conrado Hübner, todos, diga-se de passagem, com a
maestria que lhes é inerente.
Todavia,
essa interrogação apresenta um falso problema, e isso porque, conforme escreve
Hanna Pitkin, talvez a maior teórica da representação política2,
não há última palavra3.
Essa afirmação parece cair como uma luva à descrição da sociedade moderna como
complexa e contingente, vale dizer, a complexidade e a contingência da
sociedade atual como que impedem que haja uma última palavra em temas que
envolvam os conhecidos grandes desacordos morais nela presentes: futuro aberto,
tudo pode ser de outra maneira e impossibilidade de enumeração exaustiva das
relações sociais possíveis são as marcas da sociedade.
Exemplo
do que vem de ser escrito é a atual decisão proferida pelo STF na Reclamação n.
4374, que reviu posicionamento anterior e declarou inconstitucionais o artigo
20, § 3, da Lei n. 8742/93 e o artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do
Idoso, com base na mudança das circunstâncias fático-econômicas desde a
promulgação das leis até o momento atual vivido. Isso equivale a dizer que, se
o próprio STF pode mudar sua compreensão a respeito dos temas, também o
Parlamento tem essa prerrogativa, aqui, talvez, de forma muito mais ampla do
que a possível de se manifestar na jurisdição constitucional.
Portanto,
e não sendo esta sede a mais adequada para se estender sobre o assunto4, o
estado objetivo de coisas sempre pode ser alterado, seja por obra do Parlamento,
seja por obra da jurisdição constitucional.
Essa,
então, a breve análise política.
A
análise jurídica, de caráter dogmático, demanda a construção de sentido das
normas propostas no projeto de emenda constitucional.
Essa
análise pode ser feita levando-se em conta tanto aspectos formais quanto
materiais. No que diz com o aspecto formal, por exemplo, a novidade fica por
conta do aumento do quórum exigido para se declarar a inconstitucionalidade de
lei ou de ato normativo do poder público, de maioria absoluta para quatro
quintos, e para aprovar súmula vinculante, de dois terços para quatro quintos
de seus membros.
A
razão de ser dessa proposta talvez resida na tentativa de se conferir uma maior
legitimidade às decisões que declaram a inconstitucionalidade de determinadas
espécies normativas, passando dos atuais seis para nove votos dos onze
ministros.
O
estabelecimento de quórum para um processo de deliberação depende da própria
matéria a ser deliberada, por exemplo, no sistema político há a exigência de
maioria absoluta para a elaboração de lei complementar e de três quintos para a
de emenda constitucional. A exigência constante da proposta, portanto, é maior
do que aquela exigida para a criação do talvez mais nobre ato normativo do
processo legislativo, o que já demonstra, de per si, uma certa
desproporcionalidade de conteúdo.
Além
disso, ao se exigir o quórum de quatro quintos para o caso em tela, corre-se o
sério risco de se ter de conviver com um ato normativo que possa ser
considerado inconstitucional por oito ministros, maioria mais do que absoluta
dos membros do STF – isso para ficar apenas no STF –, mas que, por não ter
atingido o quórum de quatro quintos, deve continuar a existir no sistema
jurídico, fazendo com que a forma prevaleça sobre a matéria em sentido inverso
do que comumente ocorre quando se declara a inconstitucionalidade formal de um
ato normativo, vale dizer, nos termos da proposta a forma acaba por validar uma
matéria considerada inconstitucional por uma maioria mais do que absoluta.
Nessa
linha o quórum proposto na emenda constitucional é, no mínimo, inadequado, pois
que apresenta uma desproporcionalidade sem possibilidade de justificação
racional entre meio e fim, pois que, na conhecida formulação montesquiana, a
forma deve ser a garantia da liberdade, e não o seu aniquilamento. O mesmo
raciocínio vale para a aprovação da súmula vinculante, que também já exige um
quórum de dois terços, portanto, acima da maioria absoluta.
A
parte que tem causado uma maior polêmica no milieu
jurídico é a referente à exigência de se submeter, ao Parlamento, a decisão
judicial que declarou a inconstitucionalidade material de emenda
constitucional, bem assim, a que propõe a súmula vinculante. Cria, nesses
termos, uma condição para que a decisão judicial surta efeitos: no caso
da inconstitucionalidade material da emenda constitucional, à vontade do
Parlamento, se contrária à da jurisdição constitucional, soma-se a do povo, que
manifestar-se-á em consulta popular a respeito do tema; no caso da súmula
vinculante a proposta silencia.
Em
geral cita-se como origem desse tipo de norma o artigo 96, parágrafo único, da
Constituição de 1937, que dispunha: No
caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do
Presidente da República, seja necessária ao bem estar do povo, à promoção ou
defesa do interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República
submetê-la novamente ao exame do Parlamento; se este a confirmar por dois
terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.
Norma, evidentemente, produzida em tempos de crise constitucional expressa na
fórmula do Estado Novo5.
Entretanto,
talvez a origem do instituto seja encontrada em tempo mais remoto. É que há uma
semelhança, ainda que por antonomásia, entre os institutos da Constituição de
1937 e o da proposta que ora se analisa e o référé
législatif, vigente na França no período revolucionário e napoleônico6.
Havia o referendo obrigatório e facultativo e ambos se referiam à
impossibilidade de o juiz interpretar a lei, devendo apenas aplicá-la, ficando
sob encargo dos legisladores a sua interpretação, método mais conhecido como
interpretação autêntica.
Essa
forma de proceder partia de uma concepção rígida de separação dos poderes,
presente em vários discursos dos constituintes franceses, e que, ao separar
normatização e jurisdição considerava a interpretação como uma fase da
primeira. A desconfiança contra os juízes era tamanha que Robespierre chegou
mesmo a afirmar: “ce mot de jurisprudence
des Tribunaux... doit être effacé de notre langue”7.
Pois
bem, partindo-se da premissa de que os institutos guardam uma semelhança em
termos de conformação, bem podendo falar-se de um référé législatif à brasileira, certo é que uma tal concepção do
princípio da separação de poderes não mais tem lugar na sociedade moderna,
sendo mesmo de se considerar que a independência e harmonia entre eles
seja uma aquisição evolutiva da modernidade, o que vem positivado no artigo 2,
da Constituição e tomado como cláusula pétrea, núcleo eterno e intangível no
artigo 60, § 4, III, do mesmo texto constitucional.
Nessa
linha de argumentação, a independência e harmonia entre os poderes é uma
tradução dogmática do postulado sistêmico segundo o qual a Constituição é o
acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico, pois é a
independência entre eles que permite a eles operarem de forma fechada, isto é,
decidir com base apenas em suas estruturas, e é a harmonia entre eles que
permite a eles serem cognitivamente abertos, isto é, dispostos à aprendizagem.
Esse funcionamento é que permite caracterizar um sistema como diferenciado funcionalmente,
o que parecia ainda não existir na França do final do século XVIII e início do
século XIX.
Então,
a jurisdição constitucional, ao proferir decisões que não devam se submeter ao
crivo do Parlamento, nada mais faz do que prestigiar a diferenciação funcional
do sistema jurídico, e o Parlamento, ao não submeter a decisão judicial ao seu
crivo, de igual modo também faz com que
a diferenciação funcional do sistema político seja incrementada. Portanto, a
Constituição atual cumpre a contento esse papel de acoplamento estrutural entre
os sistemas político e jurídico.
Daí
porque se afigura inadequada a justificativa de que o projeto de emenda
constitucional n. 33/11 se dispõe a prestigiar o princípio da separação dos
poderes. Pelo contrário, ao condicionar a decisão emitida pela jurisdição
constitucional à deliberação do Parlamento, acaba por, dogmaticamente, ferir o
aspecto da harmonia da relação que se deve entre eles estabelecer, e
sistemicamente, por desdiferenciar funcionalmente os sistemas político e
jurídico.
Vai
daí que a adequada interpretação do texto constitucional faz remeter o termo
“separação de poderes” positivado no artigo 60, § 4, III, ao que previsto no
artigo 2, do mesmo texto, que se escreve pela sentença “São poderes da União,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário”. Separação, então, significa independência e harmonia.
Nesse
quadro, a proposta de emenda constitucional que condiciona uma decisão
proferida pela jurisdição constitucional imediatamente ao Parlamento e mediatamente
ao povo, atinge o núcleo essencial da cláusula pétrea representada pelo
princípio da separação de poderes, pois que é da própria essência da
jurisdição, seja ela constitucional ou não, decidir sem a possibilidade de que
qualquer amarra seja a ela imposta, com exceção, por óbvio, dos recursos
cabíveis.
Por
fim, a proibição de que o STF defira medida liminar para suspender a eficácia
de emenda à Constituição, ao que parece, seja monocraticamente, seja pelo
Plenário, implica, além de uma diminuição do próprio poder de julgar, uma certa
despreocupação com um recurso bastante escasso na sociedade atual e que é mais
conhecido por tempo. Se a busca da emenda é uma maior legitimação das decisões
proferidas pela jurisdição constitucional, talvez fosse mais adequado
permitir-se o deferimento de medida liminar, em caso que tal, apenas pelo
Plenário do STF.
SCHARPF, Fritz W., Judicial review and the political question: a
functional analysis, in Yale Law
Journal, march 1966, v. 75, n. 4.
PTIKIN, Hanna, The concept of representation, University of California
Press, 1972.
PITKIN, Hanna, Obligation and consent, in The American Political Science Review, v. 59, n. 4, dec. 1965.
Para um exame mais aprofundado, ver SILVA, Paulo Thadeu Gomes da,
Direitos fundamentais: contribuição para uma teoria geral, Atlas, SP, 2010, em
especial o capítulo intitulado Um pouco sobre a jurisdição constitucional, p. 71-88.
Para uma análise mais detida, ver SILVA, Paulo Thadeu Gomes da,
Constituição, sistema jurídico e questões políticas, Lumen Juris, RJ, 2011.
FRATE, Paolo Alvazzi del, Giurisprudenza e référé législatif in Francia nel periodo revoluzionario e napoleonico,
Giappichelli Editores, Torino, 2005.
Idem, p. 35.
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