terça-feira, 17 de setembro de 2013
quinta-feira, 12 de setembro de 2013
PALESTRA NA UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO - CAMPO GRANDE/MS
PALESTRA
UCDB
Os direitos fundamentais
na sociedade mundial e a emergência de um novo paradigma
1. direitos fundamentais
Muito se fala e se escreve sobre direitos
fundamentais. Pode-se mesmo afirmar que hoje vivemos um tempo em que quase
todas as relações são fundamentalizadas. Fenômeno bastante recente, que há 20
anos não se fazia presente. Também aqui dá-se por compreendido o significado de
um termo bastante complexo. Mais uma vez parece se manifestar o lugar-comum, a platitude
com referência a um termo que, na minha compreensão, merece uma abordagem
científica e, portanto, complexa.
Nessa linha, proponho dissecar o que vem a
ser direito fundamental. Para Alexy, em um texto não muito discutido[1], Direitos
fundamentais no Estado constitucional democrático, um direito humano pode ser
fundamental se apresentar as seguintes marcas: a) universalidade; b)
moralidade; c) preferencialidade; d) fundamentalidade; e) abstração.
Essas marcas fazem com que se impeça a
inflação dos direitos fundamentais.
2. sociedade mundial
Por sociedade mundial se compreende o
sistema social mundial, ou seja, a forma de reprodução da sociedade de todo o
mundo[2],
na qual os regionalismos não interferem de forma decisiva. Essa forma de observar
a sociedade é de caráter ocidental, o que deixaria de fora da sociedade mundial
aquelas sociedades que não fossem, ou que não reproduzissem os valores da
sociedade ocidental, vale dizer, da sociedade pós-industrial e que positiva
direitos fundamentais de liberdade e alguns de igualdade, isto é, sociedades
com uma semântica própria, tais quais Japão e China: mas estas, também, não são
capitalistas? A resposta positiva indica que, a despeito da existência de
particularidades que possam informar as estruturas sociais de determinadas
sociedades, elas também acabam por fazer parte da sociedade mundial.
A sociedade dita moderna é diferenciada
funcionalmente, ou seja, é composta por sistemas sociais que têm uma função
diferente de cada um: por exemplo, sistema jurídico, sistema político, sistema
econômico, etc.
A sociedade brasileira parece se inserir
nessa descrição, pois pode ser considerada como diferenciada funcionalmente,
ainda que tenha um caminho a percorrer em direção a uma mais completa
diferenciação funcional. Seus sistemas sociais, tanto quanto possível, se
reproduzem com base em suas próprias estruturas.
Mas, há um aspecto que gostaria de
ressaltar e que reputo relevante para a compreensão do tema: é a presença, no
interior da sociedade mundial, que é diferenciada funcionalmente, de sociedades
tradicionais, o que se encontra, em maior número, na América Latina e,
especialmente, no Brasil. Falo, por óbvio, dos índios e dos quilombolas.
A presença dessas sociedades tradicionais
no interior da sociedade brasileira diferenciada funcionalmente injeta uma
enorme dose de complexidade na reflexão que deve ser feita sobre ou a partir do
tema, sim, porque há diferença entre refletir sobre e refletir a partir, por
exemplo, Adorno, em seu Minima Moralia, propôs-se a refletir a partir da vida
lesada, pois que, na condição de judeu exilado, viveu essa realidade, é uma
referência vivida.
Na minha maneira de observar o tema posso
afirmar que escrevo a partir de uma realidade vivida da e na sociedade
tradicional, mais especificamente, da sociedade indígena, e isso por conta da
defesa constitucional dos direitos indígenas que fiz e faço na condição de
procurador da república.
As sociedades tradicionais são autárquicas
ou autônomas e mantêm uma relação heterárquica com a sociedade oficial ou
ocidental, e não hierárquica, ou seja, encontram-se em pé de igualdade naquilo
que diz com o reconhecimento de direitos. A assimetria nas relações de poder
decorre da não concretização de direitos, o que é outra história, pois que eles
já se encontram positivados na ordem jurídica.
No desenvolvimento das ideias, pode-se
pensar em que a sociedade brasileira diferenciada funcionalmente, isto é, a
sociedade ocidental, trata todos aqueles que não conseguem acessar seus
sistemas parciais pela lógica inclusão/exclusão, e produz uma calamidade
representada pela negligência. Essa observação vem acompanhada de um perverso
evento que se denomina de inclusão tardia. De se notar, entretanto, que essa
negligência, se referida aos índios, não significa que todos eles sejam
negligenciados por uma exclusão, e isso porque não são todos os índios, sem
embargo de séculos de contato com a sociedade envolvente, que querem acessar
esses sistemas sociais, vale dizer, há sociedades indígenas que simplesmente
querem reproduzir-se por operações baseadas não na diferenciação funcional, mas
sim com base em estruturas tribais.
Essa abordagem sociológica encontra
tradução na dogmático-jurídico-constitucional, cujo fundamento de validade são
as normas dos artigos 208, 215, 216 e 231, as quais positivam o direito à
autonomia de autorreprodução social, o que, no dizer do jurídico, significa
proteger direitos culturais, formas de ser e de fazer, tradições, línguas e
costumes, ou seja, a Constituição de 1988 permite afirmar que, por meio de suas
normas, há o reconhecimento da cultura como elemento diferenciador de pessoas e
que deve ser protegida. A cultura, sociologicamente, substitui, no século XX, a
solidariedade do século XIX, que por sua vez substituiu a felicidade humana dos
séculos XVII e XVIII.
3. paradigma
A palavra paradigma é utilizada, a torto e
a direito, pela teoria, mas sem a preocupação com o seu significado. Dá-se por
compreendido um conceito de grande complexidade para a ciência. Talvez essa
postura epistemológica seja adequada se se pensar em que a palavra fala por si,
não havendo, portanto, necessidade de se esclarecer, de forma mais detida, o
que ela significa. Esse argumento se relaciona ao coloquial lugar-comum ou, de
forma mais sofisticada, platitude.
Todavia, se estamos a fazer uma abordagem
científica ao tema proposto, então me parece imprescindível indicarmos o que
entendemos por paradigma para que a comunicação possa se estabelecer entre
palestrante e ouvintes.
Paradigma, assim, é, para Thomas Kuhn[3], uma
matriz disciplinar[4]. Esta, de sua vez, se
constitui basicamente de quatro elementos: a) generalização simbólica; b)
compromissos coletivos com crenças; c) valores; d) o próprio paradigma ou
exemplares.
A generalização simbólica é representada
por fórmulas descritas pela lógica formal, por exemplo, f = ma[5]; compromissos coletivos
com crenças, por exemplo, o calor é a energia cinética das partes constituintes
dos corpos[6];
os valores propiciam aos especialistas em ciências naturais experimentar um
sentimento de pertencimento a uma comunidade global[7]; e
os exemplares, que são “as soluções concretas de problemas que os estudantes
encontram desde o início de sua educação científica, seja nos laboratórios,
exames ou no fim dos capítulos de manuais científicos ou mesmo nas publicações
periódicas”[8].
Em um exercício de transposição desses
argumentos ao direito, ou à ciência do direito, pode-se afirmar que, com
relação à generalização simbólica, não se faz ela muito presente nessa área do
conhecimento, com exceção da lógica formal exposta em livros correspondentes.
Todavia, pode ela ser encontrada no já clássico livro de Robert Alexy, Teoria
dos direitos fundamentais, no qual se lê, expressamente, e se percebe,
nitidamente, esse tipo de generalização com o intuito de se conferir caráter
científico à argumentação. Veja-se, nesse sentido, a descrição da lei de
colisão entre princípios e as relações de precedência entre eles[9],
da máxima da proporcionalidade[10],
da ideia de sopesamento[11],
etc.
No que diz com o compromisso com crenças
parece ser o caso de se confiar em alguns dogmas que se encontram, ou não, ao
menos no direito, positivados. Aqui se manifestam, ao lado das normas
jurídicas, que são os dogmas do direito por excelência, critérios de resolução
de conflito aparente de normas, especialmente aquele referente ao conflito
entre norma constitucional e norma infraconstitucional, e também, por muito
tempo, a atribuição de efeitos à declaração de inconstitucionalidade, se ex tunc ou ex nunc.
A perplexidade que pode ser produzida pelo
que vem de ser escrito reside em que se a ciência do direito é constituída por
dogmas, e sobre estes não há possibilidade de discussão, como então seria
possível problematizar temas inerentes à matéria dogmática do Direito
Constitucional?
A possibilidade de problematização, já
apontada por REALE[12] e
resumida em frase de rara felicidade, segundo a qual “o mesmo problematicismo,
que cerca a nomogênese jurídica, lateja no bojo da regra jurídica positivada”,
encontra justificativa na existência, no texto constitucional, de normas que
veiculam princípios referentes a direitos fundamentais, princípios esses
carregados com doses cavalares de valor.
Nesse quadro, a norma constitucional é
dogma para os fins de ser tratada como ponto de partida de toda reflexão que se
leve a cabo no processo de decisão ou adjudicação, mas que comporta, por sua
própria estrutura, problematização. A só-existência desse tipo de norma é que
permite, então, afirmar, não sem alguma cautela, que o ensino dos direitos
fundamentais ocorre com a junção da dogmática e da própria zetética, uma não
excluindo a outra, mas sim complementando uma a outra, ou, nas palavras mais
adequadas de PAULINO, “... em sutil equilíbrio dinâmico”[13].
Em uma sociedade democrática os valores a
serem compartilhados pelos membros da comunidade científico-jurídica, portanto,
das ciências humanas, podem ser identificados com a organização do Estado e os
direitos fundamentais, compromissos esses que, por certo, não bastam constar de
normas positivadas, mas necessitam, antes, de um compromisso político de
respeito a eles.
E por último, mas não menos importante, o
paradigma em sentido estrito, também denominado, por KUHN, de exemplares,
soluções concretas produzidas pelas decisões judiciais ou mesmo extrajudiciais
e que podem ser encontradas, pelo estudante de direito, nos manuais e nas
revistas especializadas, seja sob a forma de simples descrição, seja sob a
forma de problematização, esta última que, no caso do Brasil, é mais difícil de
ser encontrada, pois a decisão judicial é como que tomada como verdade absoluta
a respeito do tema, o que pode ser fruto do espírito conciliador que se
manifesta também no pesquisador.
4. conclusões
O que vem de ser exposto permite, sem
prejuízo de outras, algumas conclusões. Indico, aqui, quatro delas: a) podemos
pensar em que há, atualmente, alguns paradigmas referentes aos direitos
fundamentais; b) o primeiro deles é, na teoria do direito, é o pós-positivismo a
reaproximação do direito e da moral; c) o segundo deles é, na teoria do direito
constitucional, o neoconstitucionalismo; d) o terceiro deles é, na teoria dos
direitos fundamentais: d.1) primeiro o direito penal como protetor dos direitos
fundamentais; d.2) segundo o surgimento dos direitos fundamentais de igualdade
e de liberdade das diferenças (direito coletivo).
A complexidade da sociedade moderna permite
pensar em que há não apenas um paradigma, mas sim vários a conviver e a
orientar a produção da teoria e da prática jurídicas.
Pós-positivismo é o nome que se confere à
teoria do direito que propõe a aproximação entre o direito e a moral, o que
demonstra que a história desconhece a linha reta (PAZ), pois que essa postura
epistemológica pode ser identificada com um afastamento do positivismo formal
de Kelsen e a construção de uma teoria do positivismo legal inclusivo[14],
no qual há a possibilidade de se interpretar a norma jurídica por meio dos
argumentos de justiça, correção e princípios[15].
Neoconstitucionalismo é outra palavra
bastante utilizada pela teoria, e significa, basicamente, a especificidade da
interpretação constitucional, que se representa pelos tópicos: a) princípios
versus normas; b) ponderação versus subsunção; c) Constituição versus
independência do legislador; d) juízes versus liberdade do legislador[16].
A proteção dos direitos fundamentais pelo
direito penal em nível nacional e internacional se dá por meio dos denominados
mandados expressos de criminalização, positivados em normas constitucionais que
determinam ao legislador tipificar como crimes condutas violadores desses
direitos, conforme faz exemplo o disposto no artigo 5, incisos XLI, XLII e
XLIII, da Constituição.
A igualdade e a liberdade das diferenças
leva em conta a forma peculiar de viver das pessoas, que em geral é diferente
da sociedade majoritária, enquadrando-se como titulares desses direitos tanto
as minorias quanto os grupos vulneráveis. Tem como saudável efeito o surgimento
de direitos coletivos, cujos titulares são os grupos sociais, v.g., direitos
culturais.
Finalizo com uma passagem de Grande Sertão
Veredas, de Guimarães Rosa, pois que aqui estamos a tratar de interpretações:
pão ou pães é questão de opiniães.
Muito obrigado.
[2] Segundo Luhmann: “'International', indeed, no longer refers to a
relation between two (or more) nations but to the political and the economic
problems of the global system”, Globalization or world society: how to conceive
of modern society?, in International Review of Sociology, mar 97, v. 7, issue
1.
[4] “Disciplinar porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma
disciplina particular; ‘matriz’ porque é composta de elementos ordenados de
várias espécies, cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada”,
idem, p. 226.
[12] REALE, Miguel, Ciência do direito e dogmática jurídica, in O direito como experiência, Saraiva,
SP, 2010, p. 123-145 (140).
[13] PAULINO, Gustavo Smizmaul, O ensino do direito em crise, Sergio Antonio
Fabris, Porto Alegre, 2008, p. 149.
[14] “On this view, which we have called inclusive legal positivism, moral
values and principles count among the possible grounds that a legal system
might accept for determining the existence and content of valid laws”,
Inclusive legal positivism, W. J. Waluchow, Clarendon Press, Oxford, 1994, p.
82.
[16] Tudo conforme POZZOLO, Susanna, Neoconstitucionalismo y especificidad de
la interpretación constitucional, Doxa, 21-II, 1998, p. 339-353.
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