O direito mais importante

O direito mais importante

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Direito, política, direitos humanos e direitos fundamentais

Está consolidada na teoria a ideia de que direitos humanos se referem ao campo da política, sendo dela objeto, enquanto que direitos fundamentais se referem ao direito, sendo dele objeto; para a primeira, direitos humanos seriam matéria a ser objeto de decisão ou não, pois que o sistema jurídico não está obrigado a decidir, além do que, do ponto de vista do “fazer a política”, os direitos humanos se constituem em tema guia, por exemplo, na construção das relações internacionais; para o segundo, direitos fundamentais são aqueles positivados na ordem constitucional, na infraconstitucional e na internacional, desde que incorporada, por procedimento próprio, à ordem nacional.
Há quem discorde dessa separação de termos, por exemplo, Ubiratan Cazetta (Direitos Humanos e Federalismo: O incidente de deslocamento de competência, Atlas, SP, 2009) cita Luciano Maia, para quem seria desnecessária a clivagem de que aqui se trata, e isso porque a própria Constituição Federal utiliza, sem a pretensão de diferenciar um termo do outro, tanto direitos humanos como direitos fundamentais. Não sem uma ponta de razão, de fato a Constituição não parece querer expressar diferenças no uso dos termos, pois que quando se refere a direitos humanos está a se referir, ao mesmo tempo, a direitos fundamentais. A distinção, criada pela teoria, teria finalidade apenas metodológica, na linha de uma compreensão maior das diferenças existentes entre a política e o direito do que entre direitos humanos e direitos fundamentais, estes que, substancialmente, ontologicamente, afigurar-se-iam como tendo o mesmo conteúdo.
Todavia, a distinção proposta pela teoria pode ser válida para a compreensão da própria Constituição como alguma coisa não pertencente, exclusivamente, ao direito, mas também à política. Daí a positivação de normas constitucionais que se utilizam dos termos direitos humanos e direitos fundamentais, servindo os primeiros à política, e os últimos ao direito. Seja como for, a distinção também pode cumprir outro papel constitucional e que é representado pela seguinte ideia: ao distinguir direitos humanos de direitos fundamentais e, por conseguinte, política de direito, a Constituição Federal permite a reflexão sobre esse tema pelo enfoque político e pelo enfoque jurídico. Numa primeira mirada essa afirmação pode parecer tautológica, de vez que descreve a si mesma, entretanto, e já num aprofundamento da reflexão a ser feita, ela pode significar a possibilidade de se esclarecer, por exemplo, o uso perverso e desviante, pela política, da categoria direitos humanos, e a ideologia que subjaz a determinado ordenamento constitucional, v.g., o brasileiro, contemplando, de forma bastante generosa, direitos de liberdade, e de forma um tanto ou quanto tímida, direitos de igualdade, especialmente a de caráter material.
No que diz com a utilização desviante da ideia de direitos humanos, é ela indicada por SLAVOJ ZIZEK, em texto cujo sugestivo título é Contra os direitos humanos (Against human rights, New Left Review 34, julho-agosto 2005, p. 115-131). Nesse texto o autor trabalha, numa perspectiva crítica, com os três fundamentos de maior apelo dos direitos humanos. São eles: a) os direitos humanos funcionam como oposição aos modos de fundamentalismo; b) os direitos mais básicos são a liberdade de escolha e o direito de se dedicar à busca de prazer; c) os direitos humanos podem formar a base para a defesa contra os excessos de poder. Não é o caso, aqui, de se esmiuçar as reflexões propostas por ZIZEK nesse texto, pois que faltaria espaço a tanto, o que não impede que se descrevam algumas de suas ideias. Por primeiro destaque-se que o título conferido ao artigo não corresponde ao que foi articulado em seu corpo, e assim se argumenta porque o autor, em verdade, desfere sérias críticas à concepção ocidental e liberal-capitalista de direitos humanos sem, contudo, pregar a sua pura e simples extinção: critica, portanto, o mau uso que se faz da própria ideia de direitos humanos. Nessa crítica sobressaem aspectos que dizem respeito às tais intervenções humanitárias levadas a cabo por países ocidentais e que, em realidade, encobrem interesses outros, especialmente quando se trata de acusar civilizações de um certo fundamentalismo baseado numa intolerância que foi gestada na mesma sociedade ocidental que agora ocupa posição acusatória; na mesma linha é de se destacar a construção de um conceito de liberdade de escolha que encobre eventual ausência de opções se se levar em consideração determinadas pessoas e grupos sem direitos. Nesse quadro os argumentos de ZIZEK bem podem ser compreendidos como atinentes à política, pois que os exemplos fornecidos mais se aliam a um certo “fazer a política” do que ao direito em si mesmo considerado.
De igual efeito, o pensamento lançado nesse artigo serve à análise do próprio direito, em especial dos direitos fundamentais e mais especialmente ainda no que guarda relação de pertinência com o conceito de liberdade. Isso quer dizer que, numa perspectiva crítica, há a possibilidade de se construir um conceito de liberdade no interior do sistema jurídico e por meio da interpretação constitucional no sentido de se considerá-lo, também e à semelhança do conceito de igualdade, como um conceito relacional. Afasta-se, assim, do conceito proposto por BOBBIO, para quem a distinção entre igualdade e liberdade residiria exatamente em que igualdade é relação (igual a quem e em quê) e liberdade não implica relação, pois que a expressão “X é livre”, por si só, produz algum significado, faz algum sentido. Essa forma de conceituar liberdade, a par de mesmo no continente europeu não encontrar muito eco, desde que se pense na jurisprudência construída pelo Tribunal Constitucional Federal alemão a partir do caso conhecido como Numerus Clausus, no qual ficou expresso o entendimento de que a fruição da liberdade depende das condições materiais que dão suporte ao exercício desse direito, também tem de ser revista em país como o Brasil, que ostenta níveis insuportáveis de exclusão social. Liberdade, aqui e então, também tem de ser tomada como um conceito de relação: livre com relação a quem e para fazer o quê?
O que vem de ser escrito permite o exercício de uma interpretação constitucional numa perspectiva crítica, que significa refazer o conceito do direito de liberdade como relação social, o que produz consequência na comparação que se faça desse direito com o direito de igualdade, estes que, a partir da premissa aqui defendida, passam a se manifestar de forma conjunta, o que demonstra, de igual efeito, a inutilidade de se classificar os direitos fundamentais em gerações. Na mesma linha, e ainda que a interpretação que se faça da Constituição tome esse texto como algo produzido numa sociedade liberal e de mercado, há a possibilidade de que as normas constantes desse texto sejam interpretadas de maneira a conferir ao direito de igualdade um lugar no interior do conceito de liberdade e vice-versa, fazendo com que um dependa do outro e não mais se absolutizando um em detrimento do outro.
Por certo que a crítica aos direitos fundamentais deve ser feita, o que não parece adequado do ponto de vista teórico é a defesa de sua simples e pura extinção ao fundamento de que é produto de uma sociedade ocidental. Nesse sentido a crítica deve ser endereçada à forma pela qual os direitos humanos são utilizados, o que pode produzir uma proposta de troca de nome do artigo de ZIZEK, cujo título “Contra os direitos humanos” cede lugar ao título “Direitos humanos: modo de usar”.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Música de sábado: Mahler por Mahler

http://www.youtube.com/watch?v=NK8l47x6mVc

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O Incidente de Deslocamento de Competência e os direitos humanos

A Emenda Constitucional n. 45, de 31.12.2004, acrescentou o inciso V-A e o parágrafo quinto ao artigo 109, da Constituição Federal, com a seguinte redação:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
V-A. as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo.
§ 5º. Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

Essas normas, revestidas de um caráter de novidade, vieram atender aos reclamos dos movimentos de direitos humanos que indicavam a dificuldade em se apurar grave violação a direito humano pelo sistema de justiça estadual, em geral naqueles locais identificados como sendo o Brasil profundo. Logo após sua promulgação essas normas enfrentaram movimento crítico bastante forte, em especial do setor público estadual e de alguns doutrinadores que enxergavam nelas violação ao princípio federativo, juiz natural e devido processo legal. Esses argumentos foram descritos e combatidos, de forma adequada, por Ubiratan Cazetta, em seu livro Direitos Humanos e Federalismo – O incidente de deslocamento de competência, Atlas, SP, 2009.
O Superior Tribunal de Justiça, competente, originariamente, para julgar o incidente, teve a oportunidade de se manifestar em dois processos dessa natureza. No IDC n. 1, de 2005, que tratou do deslocamento da competência para processar e julgar o crime contra a missionária Dorothy Stang, no interior do Pará, o Tribunal da Cidadania, por unanimidade, indeferiu o IDC, ao fundamento de que um de seus três requisitos, qual seja, a incapacidade de o Estado-Membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal. Os outros dois requisitos, que são a grave violação a direitos humanos e assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais, estão expressos na norma constitucional. O STJ, portanto, nesse julgamento, interpretou o dispositivo constitucional atribuindo-lhe mais um sentido, este que não está expresso no texto constitucional.
A mesma linha de interpretação foi seguida no julgamento do IDC n. 2, suscitado pelo Procurador-Geral da República e tendo por suscitadas a Justiça do Estado da Paraíba e a do Estado de Pernambuco. Tratou-se, no caso, de se deslocar a competência para processar e julgar eventuais envolvidos na morte do Advogado e Vereador Manoel Bezerra de Mattos Neto, este que vinha, na fronteira entre os dois Estados-Membro, denunciando uma série de homicídios praticados por grupos de extermínio. Esse incidente foi deferido, parcialmente e por maioria, enviando-se o processo para a Justiça Federal da Paraíba -não por acaso, os dois votos contrários ao deferimento do IDC foram proferidos por Desembargadores de Tribunais de Justiça estaduais. Nesse processo manifestaram-se os três requisitos elencados pelo STJ no julgamento do IDC n. 1, sendo certo que, com relação à incapacidade das instâncias locais em oferecer resposta efetiva para o caso, as esferas de poder respectivas manifestaram-se nesse sentido.
Nos dois casos julgados chama a atenção: a) a possibilidade de se apresentar razões como amigo da corte – amicus curiae –; b) a fraca fundamentação, pelos Ministros, a respeito da idéia de direitos humanos; c) o IDC como instrumento referente a crimes que violem, gravemente, os direitos humanos. O primeiro destaque demonstra ser necessária a regulamentação, por lei, do IDC, o que não quer dizer que a norma constitucional que dele trate não possua imediata aplicabilidade, forte no que preceitua o artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal, aliado a que uma futura normatização não poderá, de forma satisfatória, positivar rol exaustivo do que venha a ser grave violação dos direitos humanos, pois que norteada estará, também, pela cláusula de abertura do disposto no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal. Sua normatização mais minudenciada, por lei, apenas regulamentaria, de forma oficial e talvez com mais segurança, as possibilidades processuais inerentes à espécie. O segundo destaque é a quase que inexistência de fundamentação a respeito da fundamentalidade do direito -há, sim, o pronunciar de uma ou outra platitude por parte desse ou daquele Ministro-, ou o que faz dele, direito, um direito fundamental, se o aspecto formal ou se o material, o que mostra a necessidade de que o ato de julgar, hoje, demanda um conhecimento específico a respeito da teoria geral dos direitos fundamentais por parte daquele que julga. O terceiro e último aspecto diz com a reflexão que deve ser empreendida a respeito do cabimento do IDC apenas quando se referir a crime ou também quando estiver envolvida, no caso, alguma questão de índole civil. Ubiratan Cazetta, doutrinando a respeito, lança mão de casos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos para argumentar em favor da possibilidade de se utilizar o IDC também com relação à questão civil, com o que se concorda, mas, ao que parece, ela, a questão civil, deve estar ligada à criminal, deslocando-se a competência da justiça estadual para a federal de todos os processos por assim dizer conexos. Remanesce, contudo, em aberto a questão a respeito da possibilidade de deslocamento da competência quando se tratar de grave violação de direitos humanos que se represente, por exemplo, com a não concretização, pelo Estado-Membro, de direitos fundamentais de caráter social.
O IDC é um dado da realidade constitucional e contra ele de nada adianta brandir argumentos de que está ele a ferir, por exemplo, o pacto federativo, até porque a Constituição Federal positiva em seu texto o instituto da intervenção federal e nem por isso se cogita de lançar mão dos mesmos argumentos contra esse instituto. Sua existência demonstra, no plano político, um arranjo estatal para que o país transforme sua realidade de violador, por ação ou por omissão, dos direitos humanos, e no plano jurídico, para que se tenha uma efetividade da tutela jurisdicional com relação a essas graves violações de direitos humanos: é um instrumento, portanto, que permite ao país começar a viver o processo civilizatório. É isso. Sapere Aude. Paulo Thadeu.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Direito Constitucional e a política atual

A Constituição possui dois conceitos sobre si mesma que são bastante úteis para se fazer uma análise sobre o Direito Constitucional e a política atual. Seja tida, na visão de Canotilho, como o estatuto jurídico do político, seja, na visão de Luhmann, como acoplamento estrutural entre os sistemas jurídico e político, ela, a Constituição, parece existir como algo que mantém as relações entre o jurídico e o político. Daí que decisões jurídico-constitucionais afetem a política e decisões político-constitucionais afetem o jurídico. Esse efeito, a depender do conceito de Constituição que se assuma como o mais adequado, vai ser descrito de forma diferente. Por exemplo, se a Constituição for tomada como o estatuto jurídico do político, o impacto produzido pelo jurídico na política e vice-versa pode ser analisado sob a forma de produção de limites, por exemplo, os limites ao poder do Presidente da República de propor medida provisória; se a Constituição for tomada como o acoplamento estrutural entre os sistemas jurídico e político o impacto produzido por um sistema em outro, aqui já sob a forma de comunicação, será analisado pela capacidade que tanto um quanto outro sistema possui de transformar uma comunicação de um sistema em comunicação de outro sistema, por exemplo, direito da oposição de compor comissão parlamentar de inquérito, no político, é traduzido pelo sistema jurídico como direito da minoria a ser resguardado pela jurisdição constitucional.
É nesse quadro que se pode analisar a situação política atual no Brasil à luz do Direito Constitucional. Percebe-se, atualmente, a instauração de um debate que vai do político ao jurídico e do jurídico ao político. Esse debate pode ser representado, dentre outros exemplos, pela Lei da Ficha Limpa. Nesse caso, a lei foi de iniciativa popular, iniciativa essa considerada, à época da elaboração da Constituição de 1988, de boa técnica legislativa, pois positivava no texto constitucional mecanismo que ao menos tangenciava a ideia de democracia direta, no caso, semi-direta, pois que o projeto deveria, necessariamente, tramitar perante o Poder Legislativo. Nas duas sessões do Supremo Tribunal Federal que julgaram a Lei da Ficha Limpa em recursos extraordinários de políticos envolvidos diretamente com renúncia a mandato, foi afirmado que: a) a soberania popular se encontra na Constituição; b) na democracia constitucional o povo não é soberano. As duas afirmativas se equivalem em significado e querem dizer, com todas as letras, que a soberania popular não vale mais do que a Constituição, vale dizer, suas possíveis formas de realização devem ser manifestadas pelo que preceitua o texto constitucional. Essas afirmações, no contexto em que foram produzidas, soam um pouco exageradas, pois que naqueles julgamentos não se estava a tratar da constitucionalidade da iniciativa popular para propor projeto de lei, mas sim de norma já positivada por obra do Parlamento. Contudo, elas não deixam de ter a virtude de colocar para o debate uma questão política talvez das mais relevantes para o Direito Constitucional: o dilema soberania popular versus democracia constitucional. Essa relação pode ser explicada pelo valor que se deve atribuir a uma forma de poder ou a outra: o que vale mais, a soberania popular ou a democracia constitucional? Se houver a atribuição de um valor maior à soberania popular haverá a possibilidade, ao menos lógico-formal, de que o povo possa revogar a atual Constituição, sob o regime de uma normalidade democrática, e elaborar um texto novo e diferente; se houver a atribuição de um valor maior à democracia constitucional, considerando-se a soberania popular como princípio positivado na Constituição e por isso mesmo como que dependente dela para se manifestar, o que quer dizer, se manifestar de acordo com o que prescreve a própria Constituição, então o máximo em que se pode pensar é na pura e simples alteração do texto constitucional, respeitando-se as limitações já conhecidas ao poder de reforma.
Esse debate assume, também, uma outra vertente, que é aquela inerente ao exercício da democracia direta ou mediante representação política. Aqueles que atribuem um valor maior ou mesmo absoluto à soberania popular encontram razões para justificar a prática de uma democracia direta, já hoje a ser exercida numa ágora virtual, v.g., plebiscitos que podem ser feitos mediante votação por computador; aqueles que atribuem um valor maior ou absoluto à democracia constitucional, esta que não prescinde de manifestações diretas do povo, tais quais, o plebiscito e o referendo, possuem razões para continuar a crer que a melhor forma de organização e exercício do poder político é por meio da eleição de representantes do povo, representação política essa que, geralmente e sem prova empírica, é acusada de viver em crise.
O debate demonstra que a questão é bastante complexa, como costuma acontecer com todos os problemas que devem ser administrados numa sociedade democrática e moderna. O só fato de a discussão existir pode ter dois significados: a) o amadurecimento da democracia brasileira que se permite discutir assunto dessa natureza sem que haja ameaça de ruptura do próprio sistema democrático; b) um retrocesso histórico no processo de consolidação da jovem democracia brasileira à luz da vigente forma de representação indireta existente nas sociedades tidas como mais desenvolvidas ou nas quais a incidência de padrões civilizatórios seja maior.
De minha parte, continuo a acreditar na prevalência da democracia constitucional e a interpretar a soberania popular como positivada nesse grande filtro que é a Constituição, o que leva a afirmar que a sua manifestação deve se pautar pelas normas constitucionais que tratam do tema (ver, nesse sentido, Paulo Thadeu Gomes da Silva, Direitos fundamentais: contribuição para uma teoria geral, Atlas, SP, 2010). É isso. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Direitos fundamentais e cláusula pétrea

Parte da teoria dos direitos fundamentais argumenta que no conteúdo de uma teoria geral respectiva não há espaço para se discutir a questão das cláusulas pétreas, pois estas estariam afetas ao tema maior do poder de reforma constitucional e seus limites materiais (nesse sentido, ver Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, RT, SP, 2008). Este autor assim não pensa. É que essa concepção é uma concepção bastante restrita de teoria geral dos direitos fundamentais, pois, conforme escrito em livro específico, tal postura epistemológica seria criar uma fronteira no interior de uma fronteira (Paulo Thadeu Gomes da Silva, Direitos Fundamentais: contribuição para uma teoria geral, Atlas, SP, 2010). Para o adequado aprendizado, em termos de teoria geral dos direitos fundamentais, entende-se necessária a problematização a respeito do valor que se deva atribuir a esses direitos como sendo componentes de limitação material expressa ao poder de reforma constitucional. Pois bem, nessa linha, quando do julgamento, pelo STF, da chamada Lei da Ficha Limpa, Lei Complementar n. 135, de 7.6.2010, no voto lido pelo Ministro Gilmar Mendes, uma questão de grande relevância teórica veio à tona, representada pela afirmação do mesmo Ministro no sentido de que direito fundamental positivado na Constituição pelo poder constituinte derivado não seria cláusula pétrea. A perplexidade tomou conta de seus colegas, sendo certo que o Ministro Carlos Britto perguntou a Gilmar Mendes se era isso mesmo, e a Ministra Cármen Lucia fez a mesma pergunta, quando então o Ministro Gilmar Mendes afirmou que poderia haver disputa sobre essa posição, mas que, naquele caso concreto, a norma parâmetro seria o artigo 16, e não o artigo 14, § 9, ambos da Constituição, para se aferir a constitucionalidade da antecitada lei naquilo que dizia com o princípio da anterioridade eleitoral. A questão, portanto, se resumia ao seguinte: a norma do artigo 14, § 9, da Constituição, foi positivada por meio da Emenda Constitucional de Revisão n. 4/1994, que acrescentou à redação original do mesmo artigo as expressões “a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e”, após a expressão “a fim de proteger”, passando o dispositivo a vigorar com a seguinte redação. Foi a partir dessa redação que se fez a lei complementar objeto do recurso extraordinário em pauta, embora o STF tenha decidido não decidir, produzindo um verdadeiro non liquet. O ponto importante na discussão era o de se saber qual norma constitucional poderia ser tida na conta de norma parâmetro para efeito do controle de constitucionalidade ali incidente, e a resposta a esse problema dependia da compreensão que se poderia atribuir às normas criadas por emendas constitucionais: no caso da do artigo 14, § 9, veiculadora, na opinião de alguns ministros, de direito fundamental, era ela que deveria servir como norma parâmetro, ainda que criada por emenda constitucional de revisão na parte que interessava ao julgamento; para outros ministros, a norma parâmetro era aquela do artigo 16, que preceituava o princípio da anterioridade eleitoral e que havia sido positivada na Constituição pelo poder constituinte originário, ainda que tenha sofrido mudança não substancial por meio de emenda constitucional.
A noção de cláusula pétrea teve origem na Constituição norte-americana de 1787, lá chamada de entrenched ou entrenchment clause (algo como cláusulas fortificadas/reforçadas), e que tanto exigia um quórum qualificado para se reformar determinadas matérias constitucionais quanto considerava não passíveis de reforma as normas do artigo 5º, que continha duas cláusulas dessa natureza: a) uma que se referia à proibição de se editar lei que tratasse do comércio internacional de escravos e que expirou em 1808; b) outra, que vige até o momento, segundo a qual nenhum Estado, sem o seu consentimento, será privado do direito igual de voto no Senado, o que apenas demonstra a dificuldade de formação da própria União com a abdicação da soberania dos Estados-Membros, estes que se tornaram autônomos. Essa formulação constitucional parece ter encontrado eco na Constituição Imperial de 1824, que em seu artigo 178 prescrevia que "E' só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinarias (sic)" e na Constituição Federal de 1891, que em seu artigo 90, § 4, preceituava que não poderão ser admitidos como objeto de deliberação, no Congresso, projetos tendentes a abolir a forma republicana federativa ou a igualdade da representação dos Estados no Senado, matérias que até hoje, na Constituição de 1988, constam do mesmo núcleo imodificável, embora a forma republicana seja objeto de dissenso. No Brasil jurista do porte de Rui Barbosa considerava a cláusula pétrea uma questão da política, e não do jurídico, posição essa que bem se pode extrair de seus Comentários à Constituição de 1891, cujos debates travados com outros parlamentares estão ali reproduzidos, bem como pela passagem histórica no voto do Ministro Paulo Brossard quando da decisão proferida na ADI n. 939, que tratou da declaração de inconstitucionalidade da emenda que criou o antigo IPMF, mais tarde nomeado de CPMF, tributo que de provisório nada tinha, apenas o nome. Dessa breve história aos dias atuais certo é que a figura da cláusula pétrea como sendo jurídica encontra-se positivada no artigo 60, § 4º, I-IV, da Constituição Federal. Dado inserido na realidade constitucional e ali colocado pelo poder constituinte originário vem recebendo tratamento teórico no sentido de que só é cláusula pétrea aquilo que esse mesmo poder positivou como tal, o que vale, também, para a criação de direitos fundamentais, estes que, uma vez criados pelo poder constituinte reformador, e exatamente por isso, não podem ser tidos na conta de componentes do núcleo intangível da Constituição (Paulo Gustavo Gonet Branco, autor do capítulo específico, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho, Curso de Direito Constitucional, Saraiva, SP, 2009). Como se pode perceber a complexidade da questão não é de pequena monta. Esse raciocínio, exposto no livro que se vem de citar, é sobremaneira simplificado. Essa simplificação produziria o pensamento absurdo de que os direitos fundamentais positivados na própria Constituição norte-americana sob a forma de Emendas não seriam cláusulas pétreas e poderiam bem ser alterados ou no limite revogados pelo mesmo poder constituinte reformador, o que soa, no mínimo, como algo sem sentido. O problema parece residir em que a consideração de uma norma constitucional como norma parâmetro é uma coisa, enquanto que a imutabilidade de direito fundamental criado por emenda constitucional é outra. Nesse quadro, pode-se perfeitamente, num aparente conflito para se aferir qual deve ser a norma parâmetro, apenas considerar uma ou outra, a depender do caso, desde que seu conteúdo material ou mesmo sua forma tenham força de significado suficiente a tanto, tudo sem a necessidade de se tecer considerações a respeito da intangibilidade ou não de um direito fundamental criado de forma derivada, e não originária. Tanto é adequada essa forma de interpretação constitucional quanto mais se pense em que mesmo norma positivada na Constituição por emenda constitucional e ainda que não seja de caráter fundamental pode ser tida na conta de norma parâmetro.
Com relação, especificamente, ao valor que se deva atribuir a uma norma de direito fundamental nascida por obra do poder constituinte derivado, penso que é de suma importância o amadurecimento teórico que necessariamente antecede a própria aplicação em caso concreto. De minha parte, e fundamentado numa compreensão material dos direitos fundamentais, entendo que um direito fundamental positivado no texto constitucional pelo poder constituinte derivado pode, sim, ser considerado como componente do núcleo inalcançável pelo próprio poder de reforma, e dessa forma raciocino porque a própria Constituição possui uma cláusula de abertura bastante generosa para com a criação de novos direitos fundamentais. Porém, tenho de admitir que a questão demanda, ainda, um forte amadurecimento teórico, fruto de um processo de reflexão no qual várias vozes sejam ouvidas, inclusive aquelas contrárias à posição aqui assumida. E nessa discussão talvez possa ter lugar uma outra, de maior envergadura, e que é representada pela própria possibilidade de um povo, sem romper com a normalidade democrática, sem revolução ou golpe de Estado, poder revogar a Constituição atual e elaborar uma outra. É isso. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Livros banidos

No link http://www.archive.org/details/bannedbooks pode ser feito download de livros que já foram banidos: Ulisses, Cândido, A Origem das Espécies e muitos outros mais. Esses livros, hoje, são publicados normalmente, contudo, quando de sua primeira publicação, sofreram a ação da censura. Daí que é adequado considerar a concretização dos direitos fundamentais, no caso, o de liberdade de expressão da atividade literária, um trabalho em progresso. É isso. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

sábado, 25 de setembro de 2010

Música de sábado à noite

Herbie Hancock e banda, Cantaloupe Island,um standard do jazz.
http://www.youtube.com/watch?v=cqwmDNPegnM . Abraços, pthadeu.

Convite de lançamento do meu livro

Caros, abaixo convite de lançamento de meu livro. Conto com a presença de todos, vai ter damasquinho com brie e um bom borgonha pinot noir. Martins Fontes da Paulista com a Brigadeiro Luis Antonio, 7/10, 19 hs. Abraços a todos. Paulo Thadeu.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Dia especial: lançamento de livro de minha autoria

É com muita alegria que noticio a publicação de meu livro intitulado Direitos Fundamentais: contribuição para uma teoria geral, pela Editora Atlas, disponível no sítio: http://www.editoraatlas.com.br/Atlas/webapp/detalhes_produto.aspx?prd_des_ean13=9788522460762 . Agradeço a todos que, de forma direta e indireta, contribuíram para a realização dessa obra. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

sábado, 18 de setembro de 2010

Os desenhos de Gil Vicente e a liberdade de expressão da atividade artística

O título deste artigo reflete o que dispõe a norma constitucional do artigo 5º, inciso IX, que preceitua ser livre a expressão, dentre outras, da atividade artística, independentemente de censura ou licença. A arte, atualmente, é considerada, pela teoria sociológica, um sistema da sociedade. Como um sistema, possui um código, um programa, um medium e uma função. O código binário do sistema da arte da sociedade é formado, de um lado, pelo tradicional: belo/feio, e por outro lado, pelo moderno: inovador/antigo; o programa é o estilo; o medium é representado pelas sentenças de gosto e pelas obras de arte e as funções desse sistema são a produção, a apresentação e a reflexão sobre as obras de arte.
A arte, considerada como sistema, permite que se afirme que trata tanto dos processos de criação artística, quanto da criação artística já pronta. Esses processos podem ser caracterizados como pensados de forma racional ou como pensados de forma intuitiva: exemplo dos primeiros pode ser a criação artístico-literária, que exige do escritor uma postura cotidiana de escrever suas obras de ficção, postura na qual, como disse Nabokov, a forma da coisa precede à coisa. Um exemplo dos segundos pode ser a pintura, ou ao menos uma de suas formas/escolas, pela qual não há a necessidade de o pintor se prender às áridas e severas regras formais para criar sua obra, isso a depender de seu objeto.
Com relação ao jurídico e, mais especificamente, ao direito de liberdade artística, interessa aqui destacar dois pontos, não sem antes ressaltar que a criação artística é expressão ou da realidade ou de um abstrato: a) o direito de liberdade artística acaba por produzir um outro direito fundamental, que é o direito à literatura; b) no que diz com seus limites, prende-se ao par obscenidade/pornografia.
Conforme já escrito, o processo criativo é, por excelência, livre, não podendo sofrer, prima facie, restrição, seja por parte do Estado, seja por parte dos indivíduos, até porque gosto não se discute, se lamenta. Essa liberdade, aqui adjetivada de artística, à semelhança de suas outras irmãs, não é absoluta, e isso porque, uma vez analisada a criação artística a partir da perspectiva do jurídico, muito mais do que se pensar apenas em geração de direitos autorais, deve-se pensar, num primeiro momento, nas limitações impostas pelas normas, pois que a finalidade destas é a de discriminar.
Para que fique mais claro o que se vem de afirmar, é importante que se compreenda que o processo de criação artística, seja ele literário, seja ele artístico plástico, é, em si mesmo, considerado como livre. O que se relativiza são os efeitos causados pela obra já pronta e uma vez publicada ou exibida, obra essa que pode tanto causar naquele que a aprecia simpatia ou antipatia, agradabilidade ou a falta de, conforto ou desconforto (Thomas Mann assim escreve: “As pessoas não sabem por que elas tornam famosa uma obra de arte. Sem o menor conhecimento de causa, julgam descobrir centenas de méritos para justificar tamanho apreço; mas o verdadeiro fundamento de seu aplauso é algo imponderável, é simpatia”, Morte em Veneza, Nova Fronteira, RJ, 2000, p. 12). Aquele que a aprecia também goza de liberdade de escolha para qualificar uma obra e para selecioná-la, escolhê-la levar para casa e dela fazer o uso que melhor lhe aprouver, ou mesmo reprová-la, criticando-a ou assumindo uma posição de ignorá-la.
Nesse quadro é que deve ser analisada a obra de Gil Vicente, a ser exposta na próxima Bienal de Artes de São Paulo e que, uma vez conhecida e publicada nos jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo, já produzem efeitos na sociedade, pois que cria um debate a respeito de sua exposição ou não. Trata-se de vários desenhos feitos com carvão e que, em ao menos dois deles, há a figura do próprio artista direcionando uma pistola para a cabeça do ex-Presidente da República Fernando Henrique Cardoso e uma faca colada ao pescoço do atual, Luis Inácio Lula da Silva, sendo que ambos se encontram amarrados a uma cadeira. Já há pedido formal à Bienal, feito pelo Presidente da OAB/SP, Luiz Flávio Borges D´Urso, para quem as obras fazem apologia ao crime e à violência, revelam o desprezo do autor pelas figuras humanas e demonstram um desrespeito pelas instituições públicas.
As obras, portanto, ainda não foram expostas. O debate jurídico, então, pode tomar a seguinte forma. O conteúdo dessas obras está albergado pelo âmbito de proteção do direito fundamental de expressão da atividade artística? Esse direito, segundo expressa disposição constitucional, não pode sofrer censura nem depender de licença, licença aqui como ato administrativo. Com relação à censura pode-se afirmar que ela não encontra, no texto constitucional, qualquer margem que possibilite a interpretação de sua existência. Pode haver, conforme vem construindo o STF, em especial na ADPF n. 130, um controle do conteúdo expresso a posteriori, mas a priori. Uma dificuldade que essa forma de interpretação apresenta é nutrida pelo disposto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, que prescreve que nenhuma ameaça de lesão a direito pode ser excluída, por lei, da apreciação do Poder Judiciário. Como não pode haver norma constitucional inconstitucional, tem-se de, no processo de interpretação, acomodar essas duas normas, uma que não admite a censura prévia e outra que proíbe que se impeça a apreciação, pelo Judiciário, de ameaça de lesão a direito. Nesse processo de interpretação há a necessidade, primeiro, de se refletir sobre se censura prévia e ameaça de lesão a direito possuem o mesmo significado para o controle a ser exercido, se isso for possível, sobre o conteúdo artístico emitido. Na compreensão deste autor essas expressões são coisas distintas, pois a primeira, censura prévia, é proibida porque é medida afeta a um regime não democrático e porque é concretizada por um censor que não defere direito de defesa ao interessado, no caso aqui analisado, o artista que compôs os desenhos. Já a ameaça de lesão a direito a ser controlada pelo Judiciário permite o exercício do direito de defesa do interessado, este que vai expor suas razões a quem vai decidir, num processo racional e de ponderação a ser levado a cabo pelo juiz constitucional, tudo segundo formas expressamente positivadas no ordenamento constitucional e infraconstitucional. Esse modo de raciocinar permite afirmar que não há colisão entre o direito fundamental veiculado sob a forma de princípio e positivado no artigo 5º, inciso IX, e a regra positivada no artigo 5º, inciso XXXV, ambos da Constituição.
A análise, então, muda seu foco para um possível conflito entre o disposto no artigo 5º, IX, e o prescrito no mesmo artigo 5º, incisos V e X, estes que protegem a imagem das pessoas, e esta que, ao que parece, ao menos numa primeira olhada, pode estar a sofrer violação na forma como retratada nos desenhos objeto de apreciação. Com relação à norma do artigo 5º, inciso V, ela não pode ser tomada como parâmetro para a interpretação porque nela se trata da imagem atributo, e o que os desenhos supostamente violam é a imagem retrato, esta que, positivada no artigo 5º, X, pode ser tomada na conta de comparação no processo interpretativo. No curso desse processo é relevante refletir sobre se há, de fato, nos desenhos de que aqui se trata, uma violação à imagem das pessoas públicas antecitadas. Violação, no sentido empregado pela norma, pode ser tanto a revelação do retrato da pessoa sem o seu consentimento, quanto a exposição do mesmo retrato em situação que possa lhe causar algum dano, este que de há muito foi formulado, como princípio, por Stuart Mill em seu clássico livro intitulado On Liberty. Por certo que aqui não se emitirá uma resposta sobre a decisão a ser proferida em caso que tal. Antes, a preocupação é com o momento do controle judicial a ser exercido, se houver condições de possibilidade de seu exercício. Esse momento não pode ser antes da exposição dos desenhos, pois que, se isso acontecer, a censura prévia manifestar-se-á, e isso porque, embora a expressão já tenha sido concretizada na própria composição dos desenhos, estes ainda não cumpriram todo o percurso necessário à formação do próprio processo criativo, que neste específico caso pode ser representado pela necessária exposição pública das obras, desde que se pense que uma das características do direito de liberdade de expressão é causar o convencimento nas pessoas, seja ele positivo, de concordância, seja negativo, de discordância do conteúdo emitido.
Resta, ainda, a possibilidade de controle judicial após a exposição pública das obras, momento em que, num processo de aplicação da sub-máxima da proporcionalidade em sentido estrito, o juiz constitucional poderá aferir qual princípio tem peso maior a prevalecer nesse suporte fático apresentado à decisão. É isso. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

sábado, 28 de agosto de 2010

O direito de acesso do candidato ao horário eleitoral

Uma questão bastante interessante diz com a situação do candidato por determinado partido ou coligação que não tenha acesso aos programas de rádio e televisão. A matéria vem tratada no artigo 47, da Resolução TSE n. 23191/09, e que preceitua que a divisão do tempo no horário eleitoral será feita pelo partido político.
Por primeiro, imprescindível consignar que aos partidos políticos é conferida autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento, ex vi do disposto nas normas do artigo 17, § 1º da Constituição Federal.
Nessa linha, e transportadas essas ideias para o processo eleitoral, que é o que aqui interessa, é bem de ver que a interpretação mais adequada diz com a consideração desse mesmo processo eleitoral como a formalização de procedimento estabelecidos e que objetivam formatar, tanto quanto possível de forma equânime, a competição pelo poder político, vale dizer, é a essência da própria política.
Considerar-se adequada essa premissa implica a necessária reflexão traduzida em que o Estado não pode intervir nas decisões tomadas pelos partidos políticos e que se refiram ao processo político enquanto tal, i.e., materialmente, hipótese aqui representada pela decisão que privilegie o aparecimento de tal ou qual candidato em programa de televisão, pois que nessa situação o que o partido político está a fazer é um mero cálculo político, despido de qualquer violação a direito fundamental, v.g., conferir maior visibilidade a candidato que possa obter mais votos.
Assim, o mero candidato não possui direito subjetivo a aparecer em programa de televisão e falar no de rádio, mas sim expectativa de direito, especialmente no que toca a decisão do tipo em que aqui tratada. Esse destaque se faz por causa da compreensão pretoriana do E. Supremo Tribunal Federal que intervém em processo tramitado na política, v.g., composição de CPI, para corrigir eventual violação a direito fundamental de caráter individual, mais comumente, de natureza formal e representado pelo direito de defesa ou de igualdade paritária na composição das comissões.
O E. Tribunal Superior Eleitoral, pela lavra do Ministro Néri da Silveira, em resposta à Consulta de n. 449, julgado em 19.5.1998, entendeu, por unanimidade, em dela não conhecer, pois que somente aos partidos e coligações cabe a distribuição do horário gratuito eleitoral entre os candidatos registrados, nos termos do artigo 27, da Resolução do TSE n. 20.106, de 09.03.1998, compreensão essa que pode ser considerada atual, tendo em vista o que dispõe a norma do artigo 47, da Resolução do TSE n. 23191/09, que preceitua: Competirá aos partidos políticos e às coligações distribuir entre os candidatos registrados os horários que lhe forem destinados pela Justiça Eleitoral.
Suposta violação a essa norma, na argumentação qualquer candidato, como fundamento de hipotético pedido, em realidade, e pelo que vem de ser escrito, não resta configurada, pois que, nos limites traçados pela norma de regência, a discricionariedade do partido político se impõe. Pensar o contrário seria, data vênia, admitir a absurda hipótese de que todos os candidatos registrados por determinado partido político teriam o direito subjetivo de acesso ao horário eleitoral gratuito, comprometendo-se, num verdadeiro caminho sem volta, a própria força do partido político para competir no processo eleitoral e o seu sucesso na conquista do poder.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

As escolas de pensamento sobre os direitos humanos

Em um interessante artigo cujo título é What are human rights? Four schools of thought –O que são direitos humanos? Quatro escolas de pensamento (Human Rights Quarterly, v. 32, n. 1, February 2010, pp. 1-20)–, Marie-Bénédicte Dembour faz uma descrição do que ela observa como sendo escolas de pensamento existentes sobre os direitos humanos. São elas: a) escola natural; b) escola deliberativa; c) escola de protesto; d) escola discursiva. Para cada escola vai variar a compreensão que se tem dos direitos humanos. A escola natural, por exemplo, os concebe como um dado baseado na Natureza, em Deus, no Universo ou na Razão; a deliberativa os concebe como um acordo sobre eles, que de sua vez são baseados em um consenso sobre como a política deveria funcionar; a de protesto os concebe como uma luta por eles e baseados na tradição das lutas sociais e a discursiva os concebe como objeto de uma conversa sobre determinado tema e baseados na linguagem. De forma resumida essa é a descrição proposta pela autora.
Esse artigo pode servir de base a algumas reflexões valiosas a respeito dos direitos fundamentais, embora se refira aos direitos humanos. Como é sabido, a teoria se encarregou de distinguir entre direitos humanos e direitos fundamentais: aqueles seriam um conceito ligado à política, enquanto estes seriam um conceito ligado ao direito. Sem embargo da utilidade dessa distinção, importa, aqui, pensar em que a descrição proposta e referente às escolas de pensamento que serviriam de fundamento à existência dos direitos humanos pode produzir conseqüências na reflexão levada a cabo com relação aos direitos fundamentais.
A tese aqui assumida é a de que todas as quatro escolas de pensamento que tratam dos direitos humanos se manifestam na teoria dos direitos fundamentais, tomada esta na conta de descrição da doutrina e da própria norma constitucional positivada.
No que diz com a escola natural, segundo a qual os direitos humanos existem porque os seres humanos possuem direitos humanos só por serem seres humanos pode encontrar justificativa constitucional na inclusão de todos operada pelo sistema jurídico e, mais precisamente, pela Constituição, pois que defere, a todos os indivíduos e grupos, direitos fundamentais, ainda que essa idéia implique a existência simultânea de restrições. E ao menos ao nível positivo essa inclusão é universal, mesmo, reforça-se, com a manifestação de restrições.
Com referência à escola deliberativa, parece ser mesmo da essência da transformação dos direitos humanos em direitos fundamentais a sua presença, pois que o processo de positivação de uma idéia política representada por um direito humano é levado a efeito pela política, daí decorrendo o direito fundamental já positivado. Esse como que mágico toque da política em um direito humano para que se transforme em um direito fundamental é feito de forma originária ou derivada, naquela pelo poder constituinte que faz uma Constituição, nesta pelo poder constituinte que a reforma. O mesmo raciocínio vale para o poder que cria o ordenamento infraconstitucional, desde que se pense, e se admita, a existência de direito fundamental fora do texto constitucional.
Com relação à escola de protesto, embora negue o caráter universalizante dos direitos humanos, afirmando que o que é universal é o sofrimento, também ela se faz presente no sistema constitucional dos direitos fundamentais, pois que, se se observar os direitos fundamentais como um trabalho em progresso, pode-se concluir que outros direitos fundamentais podem ser positivados no ordenamento jurídico pela política, v.g., direito social à moradia e à segurança alimentar, artigo 6º, da Constituição Federal. O fato de que essa escola considera o sofrimento como universal em nada invalida o que aqui articulado, pois um fértil exercício de conceituação do próprio direito fundamental é aquele realizado pela análise de seu contrário: bem estar/sofrimento, igualdade/desigualdade, liberdade/coerção. No limite bem é de se argumentar que se não houvesse violação a direito fundamental não haveria, do mesmo modo, o menor sentido em se estudá-lo, pois que então viver-se-ia no melhor dos mundos constitucionais possíveis, idealização que nega a própria realidade, esta que, nessa percepção pode ser confundida com desejo.
Por fim, a escola discursiva, que afirma consistirem os direitos humanos em qualquer coisa que se inserir neles, e por isso são eles alguma coisa falha. Essa escola nega a própria realidade, esta que vem sendo construída há pouco tempo histórico e que apresenta um alto grau de institucionalização representada por práticas e decisões que promovem e protegem os direitos fundamentais. Por certo que uma dose de ceticismo sempre é útil à sociedade, e parece mesmo que essa escola existe para chamar a atenção para as deficiências estruturais que podem comprometer política e direito dos direitos humanos fundamentais. Contudo, uma pitada de razão acena em direção a essa escola, especificamente naquilo que se relaciona com a produção de uma certa legislação simbólica, como se a positivação de um direito humano em direito fundamental pudesse resolver os problemas gerados pela e na ordem social, v.g., positivar direito social ao lazer, trivializando-se um conceito que deveria ser, em essência, não banal, e mais, atribuindo-se a sua solução ao sistema jurídico, esquecendo-se do político e do econômico. Nesse particular a cética crítica parece ter procedência.
O que vem de ser escrito pode, tranquilamente, influenciar a discussão sobre o conceito de direitos fundamentais, pois, na proposta aqui desenhada, todas essas escolas se manifestam no sistema constitucional dos direitos fundamentais. A conclusão, por óbvio, vai depender do observador. É isso. Sapere Aude!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O direito eleitoral e a igualdade

A legislação, se com referência à liberdade de expressão se mostra bastante restritiva, com relação à igualdade apresenta regras protetoras dela, seja sob a forma de igualdade formal, seja sob a material. Nesse sentido são as regras que proíbem a utilização do tempo de propaganda no rádio e na televisão destinado às candidaturas proporcionais pela candidatura majoritária e vice-versa.
Na doutrina autorizada tem-se que “não é permitida a invasão de horário, entendendo-se como tal a inclusão no horário destinado a candidatura proporcional, de propaganda de candidato majoritário e vice-versa”. [...] Também é proibida ‘a utilização da propaganda de candidaturas proporcionais como propaganda de candidaturas majoritárias e vice-versa’” , exatamente como dispõe o art. 53-A, § 2o, da Lei de Eleições, positivado, também, no artigo 43, § 2o, da Resolução n. 23.191/09, do E. TSE. “Cada qual deve se limitar ao espaço que lhe é reservado, de sorte que não haja desvirtuamento da natureza da propaganda a ser realizada, prevenindo-se, assim, o desequilíbrio do pleito”, como pontua o eminente Procurador Regional Eleitoral em Minas Gerais JOSÉ JAIRO GOMES.
De antemão, é oportuno, nesse aspecto, assinalar que propaganda negativa e invasão de horário/espaço são questões autônomas e distintas. Aquela, na visão deste autor, é permitida, pois, como demonstrado em manifestações anteriores, a crítica deve ser protegida, com muito maior peso na esfera política, porque é nesse campo que se efetiva a própria democracia, a manifestação e o debate das ideias, e estas, ainda que sejam ruins, devem ser combatidas não com a pura e simples proibição de sua veiculação, mas sim com a liberdade de se emitir ideias mais adequadas.
A ratio essendi das normas positivadas tanto na Lei de Eleições, quanto na Resolução regulamentadora, diplomas supracitados, se traduz na concretização, na esfera político-eleitoral, do direito de igualdade, seja ele formal ou material. Essa afirmação encontra justificação constitucional no preceituado pelas normas do artigo 5o, “caput”, da Constituição Federal, que tem o poder de criar verdadeira cláusula geral de igualdade, o que significa dizer: a) o direito de igualdade se refere, de forma geral, a todos os indivíduos e grupos; b) vincula o legislador e o aplicador da norma jurídica.
Nessa linha de raciocínio, que se considera, constitucionalmente e de forma geral refletindo, a mais adequada, a igualdade formal, na esfera política, se manifesta, por exemplo, pelo disposto nas normas dos artigos 57, § 5o e 58, §§ 1o e 4o, da Constituição Federal, e a igualdade material, de sua vez, pelo disposto nas normas do artigo 17, “caput”, do mesmo texto, quando determina o respeito, pelos partidos políticos, aos direitos fundamentais, dos quais, ça va sans dire, o de igualdade é espécie.
Num exercício de reflexão mais específico, a igualdade formal se manifesta no puro e simples estabelecimento de regras formais que tenham por finalidade impedir que o processo eleitoral se transforme em um anything goes, em um vale tudo, e a igualdade material no proporcionar a igualdade de chances aos competidores que se lancem no processo eleitoral respectivo. Essas, portanto, as razões fundadoras das normas dos artigos 53-A e § 2o, da Lei de Eleições e 43, § 2o, da Resolução n. 23.191, do E. TSE.
Na interpretação que deve ser feita com relação à norma em foco, extrai-se que seu sentido diz com a proibição do uso do tempo destinado às candidaturas proporcionais, de forma indireta ou mediata, pelo candidato majoritário.
Diz-se desse tipo de conduta que ele é indireto ou mediato porque, ao que parece, a norma do artigo 43, § 2o, em questão, protege a igualdade de chances dos candidatos pela proibição de uma utilização do tempo destinado ao candidato proporcional, pelo candidato majoritário, quando ocorrer a hipótese retratada nestes autos, qual seja, aquela em que o candidato majoritário não aparece, diretamente, e faz a sua propaganda, hipótese essa prevista no artigo 43, “caput”, da mesma Resolução.
Atribua-se o nome que se queira a essa prática, “vacina”, em realidade o que se pretende proibir é a ocupação indevida do tempo que ocorre de forma indireta ou mediata, o que acaba por dificultar, ainda mais, o estabelecimento da linha divisória entre campanha irregular e regular.
Nessa linha pode se configurar a burla à lei mensagem veiculada em tempo destinado à candidatura proporcional e que tenha por destinatário, direta ou indiretamente, candidatura majoritária, sem que haja qualquer menção às atribuições inerentes ao mandato político de legislador estadual e às propostas inerentes ao exercício de tão nobre ofício.
Em realidade, além de a lei proteger o direito de igualdade, acaba por prestigiar a própria composição, feita em período anterior à campanha, dos partidos políticos e referente à aliança entre eles, esta que vai determinar o tempo destinado a cada uma das coligações, e como num raciocínio circular, estas também devem, por força do disposto no artigo 17, “caput”, da Constituição Federal, respeitar os direitos fundamentais, aí incluídos, por certo, os de igualdade.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Liberdades e igualdades

Uma compreensão adequada do tema das liberdades e das igualdades pode ser obtida se se considerá-lo como um sistema constitucional, tendo-se, assim: a) o sistema constitucional das liberdades e b) o sistema constitucional das igualdades. Apesar de se apresentarem separadamente, são unidos por íntima e lídima relação de dependência, i.e., para que um exista o outro também deve existir. O que significa que a liberdade, para se manifestar, depende da igualdade. Pense-se no famoso caso de uma cidadã paulistana cega que foi impedida de utilizar o serviço de metrô com seu cão guia, pois não era admitida a entrada de cães. Medida judicial tomada foi obtida decisão que permitia a ela usar o meio de transporte público com seu cão guia. Esse caso demonstra que, imediatamente, tratou-se do direito de liberdade sem predominância econômica, representado pela liberdade de locomoção, de ir e vir, cuja medida restritiva impedia sua concretização, e mediatamente tratou-se do direito de igualdade, seja pela perspectiva da igualdade material, pela qual os indivíduos ou grupos que ocupam posição de desvantagem na sociedade devem ser protegidos por decisões que promovam seus direitos, seja pela perspectiva da igualdade diferenciadora, esta que é representada pela expressão “iguais, mas diferentes”, e não “iguais, mas separados”, significando não uma homogeneização da sociedade no sentido de que todos sejam iguais, mas sim que mesmo aos diferentes os direitos de igualdade estão disponíveis. Para tema complexo, abordagem complexa.
Tanto as liberdades quanto as igualdades podem – e devem!!! – ser descritas pelos seus contrários, i.e., se do que se trata é de suposta violação a esses direitos fundamentais, desde que se pense que não se vive no melhor dos mundos constitucionais: igualdade pela desigualdade e liberdade pela não liberdade. Daí a necessidade de se lançar mão de métodos ou critérios para que eventual violação a esses direitos fundamentais seja aferida como constitucional ou não. Nesse quadro destacam-se dois métodos de resolução dos conflitos: a) o já clássico proposto por Celso Antonio Bandeira de Mello e segundo o qual há de se analisar o elemento discrímen, a finalidade da discriminação e a relação de justificação lógica que deve existir entre os dois; b) a máxima da proporcionalidade.
O primeiro método pode se referir aos casos que envolvam a igualdade formal, como sói acontecer com as contestações aos critérios estabelecidos para concursos públicos: sexo, idade, altura, estes que, dependendo da resposta que se dê ao tratamento diferenciado, podem ser considerados constitucionais ou não.
O segundo método é a máxima da proporcionalidade e os seus três testes, quais sejam, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Este método é mais completo do que o primeiro e pode-se mesmo considerar que o primeiro esteja compreendido, em sua inteireza, neste segundo, pois o teste da adequação parece indicar que se trata da mesma coisa. Este segundo pode ser mais indicado para os casos envolvendo igualdade material e igualdade diferenciadora, sendo de se destacar, contudo, que mesmo a aplicação desta máxima da proporcionalidade, com todos os seus parâmetros, ainda deixa um campo muito amplo à discricionariedade e ao arbítrio do juiz. O problema, por certo, não se encontra na formulação da máxima, mas sim na estrutura normativa do direito de que se trata, em geral, direito social. O tema acresce em complexidade se se pensar em que, quando se está a tratar de interpretação de direito fundamental, a finalidade (ou, para aqueles que preferirem, a função) deve se sobrepor à estrutura: não se trata mais, então, de se perscrutar a respeito de como é feita a norma constitucional do direito à educação, mas sim de analisar qual a sua finalidade. É isso. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O direito eleitoral e a liberdade de expressão

A legislação (Resolução n. 23.191/TSE) e a prática do direito eleitoral (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral n. 26.721/TSE-propaganda com crítica negativa), neste ano de eleições, têm demonstrado a criação de importante tensão entre uma práxis restritiva a direito fundamental e o direito fundamental restringido, qual seja, a liberdade de expressão. Dentre outras restrições, chama a atenção aquela que estaria a proibir propaganda representada pela crítica negativa, aí incluídos, por extensão, programas de humor que possam ridicularizar os candidatos. A intenção, aqui, é contribuir para o debate público norteado pelo livre mercado das ideias e com essa finalidade deve-se analisar se o direito de crítica negativa se insere no âmbito de proteção do direito fundamental de liberdade de expressão.
O direito fundamental de liberdade de expressão vem positivado na norma do artigo 5o, IV, da Constituição Federal, segundo a qual é livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato, norma essa que deve ser, compulsoriamente, interpretada com o disposto no artigo 5o, IX, do mesmo texto, pelo qual é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Por certo que não há direito fundamental de índole absoluta, tendo em vista a possibilidade de restrição a qualquer direito fundamental prevista na Constituição Federal e no ordenamento infraconstitucional.
As mensagens objeto da restrição legal podem ser ou não de natureza eleitoral: no primeiro caso quando se referirem à vida política do candidato, no segundo quando se referirem à sua vida privada. Neste passo, é suficiente argumentar que pessoas públicas possuem uma esfera de sua privacidade diminuída em relação às pessoas, por assim dizer, não públicas. Daí, por si só, a justificativa a que a própria pessoa sofra as consequências dessa exposição pública. É o preço que se paga por se viver numa sociedade democrática.
Essas consequências devem tanto mais ser suportadas pela pessoa pública quanto mais se pense em que é essa mesma exposição pública que reforça o nome do candidato na esfera política. De mais a mais, frases de nítido conteúdo ridicularizador não são atentatórias a qualquer aspecto da vida do candidato, e podem, inclusive, entrar para o anedotário político do local [aqui é importante destacar que a utilização do chiste como forma de expressar o pensamento pode ser pensada como liberação pacífica da própria agressividade, o que torna a convivência social muito mais saudável que a liberação por meios violentos, cfr. Joel Schwartz, Freud and Freedom of Speech, The American Political Science Review, v. 80, n. 4 (Dec. 1986), pp. 1227-1248].
Nesse particular aspecto, bem é de se ver que mesmo no caso de veiculação de mensagens que ridicularizem uma pessoa pública, a liberdade de expressão deve ser respeitada, e isso porque, a uma o que se está a fazer é emitir juízos de valor ou de desvalor com relação à esfera privada/pública da pessoa, o que, só por si, descaracteriza a manifestação de eventual interesse público, e a duas porque, se os conteúdos comunicados são de ordem a provocar o riso, sob forma de chiste, não são eles aptos a convencer quem quer que seja de que são verdadeiros, tamanho o absurdo do próprio conteúdo transmitido [ver, nesse sentido, o famoso julgamento da Suprema Corte norte-americana, Hustler Magazine v. Falwell, 485 US 46, 1988].
Indo-se mais além, é de se destacar que a crítica pode ser produzida em um contexto eleitoral, pois que se está a viver período em que as regulares eleições serão realizadas. Aqui é importante analisar se a crítica tem algum potencial para desconstruir a candidatura proposta: em caso negativo, vale o direito fundamental em sua plenitude. Sem embargo de não terem potencial de desconstrução da candidatura do representante, as mensagens podem ser tidas como de caráter político, como uma espécie de cobrança, por parte de cidadãos, a uma pessoa que se propõe a representá-los.
No contexto particular da política a liberdade de expressão é, sim, absoluta [nesse sentido, ver Alexander Meiklejohn, The first amendment is an absolute, in Vikram David Amar (ed.), The first amendment, Prometheus Books, New York, 2009, pp. 125-140], desde que se pense, por exemplo, nas factíveis situações expressas no direito de voto, no qual o cidadão se encontra apenas com a sua consciência no momento de votar, e na imunidade material dos parlamentares, ambas expressas nas normas dos artigos 14, “caput”, e 53, da Constituição Federal. E causa espécie, portanto, que haja legislação e interpretação restritivas exatamente no campo da política no qual deveria haver a mais ampla possibilidade de se fazer discursos, seja porque esse direito signifique autorrealização dos indivíduos, seja porque signifique participação na tomada de decisões essenciais para as suas vidas [cfr. Thomas I. Emerson, The System of Freedom of Expression, Vintage Books, New York, 1970]. O mesmo raciocínio se aplica às situações em que há o exercício do direito de crítica, ainda que seja ela em tom inapropriado ou em tom de picardia.
É que a tal categoria da crítica negativa é exemplo cabal de redundância que cheira à censura, pois que toda crítica traz consigo um potencial de desacordo, ainda que moral, que vai de encontro à possibilidade de se qualificar como sendo crítica positiva. Portanto, se não existe a positiva, não pode existir o seu contrário. Há, sim, apenas a crítica, que deve ser protegida, com muito maior peso na esfera política, porque é nesse campo que se efetiva a própria democracia, a manifestação e o debate das ideias, e estas, ainda que sejam ruins, devem ser combatidas não com a pura e simples proibição de sua veiculação, mas sim com a liberdade de se emitir ideias mais adequadas. É isso. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

terça-feira, 29 de junho de 2010

A questão da ficha limpa

A coloquialmente denominada questão da ficha limpa envolve uma discussão constitucional bastante interessante. O quadro atual no qual ela se apresenta resume-se em saber se a Lei Complementar n. 135, de 4/06/2010, nos vários artigos que positivam a redação “decisão proferida por órgão colegiado”, é constitucional ou não. Essa lei complementar veio regulamentar o disposto no artigo 14, § 9, da Constituição Federal, que dispõe que “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.
A questão não é nova. Na década de 1970, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, no RE n. 86297, que a inelegibilidade prevista no artigo 1, I, n, da Lei Complementar n. 5/70, era parcialmente constitucional. Esse artigo preceituava: “Art. 1: São inelegíveis: I: para qualquer cargo eletivo: n) os que tenham sido condenados ou respondam a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente, por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública e a administração pública, o patrimônio ou pelo direito previsto no art. 22 desta Lei Complementar, enquanto não absolvidos ou penalmente reabilitados”.
Esse caso é bastante interessante porque nele o STF decidiu que a cláusula de abertura constante do então artigo 153, § 36, Constituição de 67/69, hoje transcrito no artigo 5, § 2, da Constituição atual, não albergava o princípio da presunção da inocência, de vez que na Constituição de 67/69 esse direito fundamental não veio positivado expressamente em seu texto. Os votos então proferidos, muito bem fundamentados, são verdadeiras aulas de direito, daí decorrendo a impossibilidade de sua descrição neste espaço.
Ao lado do destaque já feito acima, pode-se extrair, como resumo, que a quaestio juris se refere à possibilidade ou não de se aplicar a presunção de não culpabilidade às causas de inelegibilidade que se fundem em aspectos relativos à moralidade do candidato, redação essa prevista no artigo 151, da Constituição de 67/69 e no 14, § 9, da Constituição atual. A perfeita tradução dessa questão é representada pela natureza que se deva conferir à própria inelegibilidade: é ela pena ou não? Se considerá-la como pena o princípio da presunção da não culpabilidade incidirá e a consequência dessa incidência será a de se considerar inconstitucional a redação da lei complementar atual que não traga consigo a exigência do trânsito em julgado, tendo em vista o disposto no artigo 5, LVII, da Constituição atual; se não for considerada pena, o princípio não incidirá.
Essa foi a tônica do voto vencedor do Min. Arnaldo Versiani, do TSE, em resposta à Consulta n. 1147-09.2010.6.00.0000, que firmou, por maioria, a premissa de que a inelegibilidade não é pena, trazendo à colação a compreensão construída pelo próprio TSE nos Recursos n. 9797/92 e 8818/90, como também do STF no MS n. 22.087. Para complicar um pouco mais o quadro de discussão constitucional, é forçoso lembrar que na ADPF n. 144 o STF decidiu, por maioria, julgando improcedente a ação, que a norma do artigo 14, § 9, da Constituição Federal não é auto-aplicável, contudo, não houve uma uniformidade nos fundamentos apresentados, sendo certo que em alguns votos ficou a compreensão de que mesmo com a regulamentação do dispositivo por lei complementar – o que já é realidade neste momento – haveria a necessidade de trânsito em julgados de decisões judiciais que se referissem à improbidade do candidato, interpretação essa que consta de forma bastante forte na Ementa do Acórdão.
Do ponto de vista político é irônico que se esteja a discutir esse tipo de questão constitucional, pois que ela existiu nos tempos de ditadura militar; do ponto de vista histórico demonstra que não há uma linearidade da história em direção a um mundo novo e sem recorrências ao passado; do ponto de vista jurídico-constitucional o STF terá de se manifestar, novamente, a respeito do tema. É isso. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

sábado, 26 de junho de 2010

terça-feira, 22 de junho de 2010

Direito fundamental ao nome eleitoral

Questão interessante que está a desafiar a interpretação jurídica é aquela referente ao registro, por terceiro, de domínio, na internet, com a utilização de nomes de pré e de candidatos oficializados pelos partidos políticos para o pleito eleitoral deste ano.
A questão posta tem índole constitucional, pois que o registro indevido de domínio referente à Rede Mundial de Computadores se constitui em desdobramento do direito fundamental de personalidade representado pelo direito ao nome eleitoral. Essa ideia decorre do que dispõem as normas pertencentes aos ordenamentos constitucional e infraconstitucional.
Com relação ao primeiro servem de arrimo à reflexão as normas do artigo 5, incisos IV e X, e § 2o, da Constituição Federal, pelas quais preceitua-se que a honra, a privacidade e a intimidade das pessoas são bens expressamente protegidos e que a enumeração explícita dos direitos fundamentais não esgota a possibilidade de haver outros direitos fundamentais decorrentes do regime, dos princípios e dos documentos internacionais de direitos humanos. Já referentemente ao ordenamento infraconstitucional é de se ter em mente o disposto na norma do artigo 16, do Código Civil, pelo qual todos têm direito a um prenome e a um sobrenome.
A força de significado atribuída às normas constitucionais em questão advém da dimensão subjetiva e da dimensão objetiva dos direitos fundamentais. A primeira significa que o titular de direito fundamental é titular de direito subjetivo, pelo qual possui uma pretensão, um direito subjetivo em sentido estrito e uma ação judicial; a segunda significa que os direitos fundamentais deitam suas raízes por todo o ordenamento jurídico nacional, seja ele constitucional, supralegal ou infraconstitucional, o que produz a salutar consequência traduzida na necessidade de se interpretar a Constituição conforme aos direitos fundamentais.
Tomada por esses significados é a norma do artigo 16, do Código Civil, que permite interpretá-lo, por isso mesmo, como devendo o Estado e a sociedade zelarem pela sua proteção, seja ele direito ao nome civil, seja ele direito ao nome eleitoral, este projeção daquele, portanto, projeção de um direito fundamental da personalidade, pois não se pode, por amor à lógica, imaginar que alguém possa ter existência civil e não existência eleitoral, desde que esteja apto ao exercício dos direitos políticos, inserindo-se nestes últimos o direito à propaganda eleitoral. Aqui vem à mente a incorporação de apelidos ao nome próprio como parte constitutiva da existência eleitoral, da qual o atual Presidente da República é exemplo cabal.
Daí que parece ser tomada pela fumaça do mau direito conduta representada pelo registro, sem autorização, de nomes de pessoas que sabidamente serão candidatas em processo eleitoral que se avizinha, constantes de domínio referente à rede mundial de computadores.
O direito à proteção do nome eleitoral tanto mais se fortifica quanto mais se pense em que a Lei n. 12.034/09 autorizou a prática de propaganda eleitoral na rede mundial de computadores. Se assim é, a questão tem força suficiente a atrair a jurisdição eleitoral cível, pois que o ato de que ora se trata se constitui num impedimento explícito e maculador da legislação que permite a propaganda eleitoral, tudo sem prejuízo das conotações criminal e reparadoras a serem objeto de esclarecimento em instância própria.
Um outro fundamento bastante forte e que serve de alicerce à argumentação aqui traçada diz com o cerceamento que a conduta em foco produz com relação ao exercício do direito fundamental de liberdade de expressão. É que esta liberdade, desde os primórdios e ao menos na realidade norte-americana e a sua famosa Primeira Emenda, se referia ao discurso levado a efeito na arena política, mais especificamente representado pela possibilidade de se criticar o governo. Na evolução semântica de sua concepção se espraia, atualmente, por todos as esferas do mundo da vida, seja ele privado, seja ele público.
Assim é que, no tempo presente, o direito de liberdade de expressão se refere, de forma geral, ao livre mercado de ideias e ao discurso político, sendo que pessoas físicas e jurídicas (na doutrina: Jónatas E. M. Machado, Liberdade de Expressão, Coimbra, 2002; na jurisprudência: Citizen United v. Federal Election Comission, US Supreme Court, 2010) podem ser seus titulares. Nessa linha de raciocínio, que se ilustra pela possibilidade de se exteriorizar pensamentos, ideias, opiniões, convicções, bem como sensações e sentimentos em suas mais variadas formas, quais sejam, as atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação, envolvendo tema de interesse público ou não, não abrangendo a violência, mas podendo causar convencimento nas pessoas, a propaganda eleitoral, que tem como objetivo exato o de, mediante a prática do proselitismo, ganhar adeptos à candidatura formalizada, é espécie do gênero maior que é a liberdade de expressão.
Daí que qualquer conduta tendente a impedir o regular exercício do direito de se fazer propaganda eleitoral fere, também, o direito fundamental de liberdade de expressão. E, para este caso, o registro de domínio, por terceiro, pessoa jurídica estranha às pessoas físicas de pré-candidatos e de candidatos, na internet e se utilizando dos nomes eleitorais desses mesmos pré-candidatos, impede o registro do domínio pelos titulares dos próprios nomes, o que acaba por gerar o absurdo de o real titular do nome eleitoral não poder utilizá-lo, a não ser mediante autorização do terceiro que o registrou.
Se é certo pensar que neste caso não se trata do conflito entre registro de domínio e marca, não é menos correto afirmar que, na colisão que ora se apresenta, entre registro de domínio e nome eleitoral, também deve prevalecer o direito do “dono” do nome pessoa física e pré-candidato, à semelhança do que vem entendendo a jurisprudência nacional a respeito do primeiro conflito. É isso. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

domingo, 13 de junho de 2010

Princípio da proporcionalidade: parte II

Dando sequência ao que foi escrito na postagem sob título Princípio da proporcionalidade: parte I, neste momento serão feitos dois testes de aplicação desse princípio: a) o primeiro deles se refere à ADI n. 1969, já decidida pelo STF, mas sem a aplicação do princípio; b) a segunda se refere à ação civil pública ajuizada pelo MPF e que se encontra em grau de recurso junto ao TRF3.
No caso da ADI 1969 estava em jogo decreto do Governador do Distrito Federal que proibia a manifestação de pessoas na praça dos Três Poderes portando megafone e carro de som. No primeiro teste, que é a adequação, é de se perguntar se a medida restritiva era útil ao fim a que se propunha, talvez o de não atrapalhar as pessoas que estivessem trabalhando no mesmo local e no mesmo momento da reunião, sendo certo que naquela região há apenas funcionários públicos. De saída não parece adequado pensar que a medida seria útil ao objetivo pretendido, e assim se afirma porque, a despeito de não se emitir som com megafone e carro de som, os manifestantes bem poderiam começar a entoar cantos e a gritar palavras de ordem que pudessem produzir sons ou barulhos em igual ou mesmo maior potência. Demais disso, não se pode argumentar que o serviço público, uma vez a reunião se realizando com os instrumentos proibidos, sofreria solução de continuidade, pois que manifestações sempre são feitas por período determinado.
Contudo, e apenas para que se possa continuar a aplicar o teste seguinte da necessidade, considere-se, hipoteticamente, que a medida seja adequada. A necessidade manifesta-se pela inexistência de medida restritiva menos danosa ao direito fundamental. Na reflexão a respeito da medida em comento, poder-se-ia pensar numa regulamentação do direito de reunião na qual a própria potência dos instrumentos proibidos fosse regulada, restringindo-se, assim, em menor grau, o direito fundamental de reunião. Há, portanto, medida menos danosa que a simples proibição geral de portar as ferramentas próprias ao exercício do direito de reunião.
Todavia, e também apenas com o intuito de se aplicar o último teste, conclua-se que a medida é necessária. Na aplicação do terceiro teste, i.e., a proporcionalidade em sentido estrito, a primeira pesquisa que deve ser feita é saber se o ônus imposto é menor que o benefício almejado. No caso o ônus imposto ao direito de reunião é representado pela proibição de portar megafone e carro de som, ao que parece, com vistas a resguardar a tranqüilidade e o direito das pessoas que querem continuar trabalhando na mesma área e no mesmo momento em que ocorre a reunião. Na avaliação a ser feita o ônus criado fere, em sua essência, a concretização do direito de reunião, pois que este, para se realizar, necessita dos instrumentos proibidos para que a reunião possa ter coordenação ou um mínimo de. Sem essa possibilidade, não há como se efetivar o direito de reunião. Além disso, o objetivo pretendido, nesse quadro, é de menor importância que a proibição gerada pela regra, de vez que, parece ser de todos sabido, aqueles que estão a trabalhar em momento específico no qual se realiza a reunião, embora possam, em tese, ser atrapalhados pelos sons emitidos da manifestação de protesto, não se encontram impedidos, de forma absoluta, de exercer suas atividades. O atrapalho é, por assim dizer, o custo que se paga por viver em uma democracia. Dessa forma, a medida ora analisada não é proporcional em sentido estrito. Seja por uma razão, seja por outra, é ela inconstitucional, o que foi reconhecido pelo STF.
O segundo caso se refere a uma ação civil pública proposta pelo MPF com o objetivo de que o INSS se abstenha de indeferir pedido de auxílio gestante às índias menores de 16 anos e grávidas que já trabalhem, desde cedo, com os pais nas respectivas áreas indígenas. Esta questão trata, prima facie, de uma colisão de direitos fundamentais, o primeiro positivado na norma do artigo 7, XXXIII, da Constituição Federal, pela qual se proíbe o trabalho do menor de 16 anos, com exceção, a partir dos 14, do menor aprendiz. Essa norma, ao que parece, é uma regra, e não um princípio, pois impõe dever e garante direito de forma definitiva. O outro direito fundamental é expresso pelo que diz a norma do artigo 231, caput, da Constituição Federal, que reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Nesse quadro, os índios trabalham com suas famílias, desde muito cedo, nas lidas diárias realizadas nas terras indígenas.
Esta questão é um pouco mais complexa do que a primeira, porque aqui o que discute não é uma relação de restrição pura e simples, mas sim um conflito entre um direito fundamental ocidental e um direito fundamental tradicional, ainda que ambos se positivem num marco regulatório nitidamente ocidental, que é a Constituição. De um lado há a proibição ocidental do trabalho do menor no sentido de se impedir a exploração das crianças, contudo, o trabalho desempenhado pelos menores indígenas em suas famílias não se caracteriza pela exploração presenciada na sociedade envolvente, pois que não há, na produção indígena, preocupação com a produção de excedentes visando à comercialização, até porque a relação estabelecida pelo índio com a terra é de sacralidade, e não de economicidade.
Por outro lado, é dos costumes indígenas a realização de casamentos entre as pessoas com idade bastante nova, de modo que essas uniões podem servir de base à concessão do benefício, não se aplicando, aqui também, os institutos civis da capacidade.
A medida judicial que deferiu a liminar e que é objeto de recurso no TRF3 não restringe direito fundamental, pelo contrário, concretiza uma sua espécie, que é o direito cultural dos índios. Portanto, não se trata de regra restritiva de direito fundamental. Em caráter excepcional, então, pode-se pensar que este é um caso de regra colidindo, diretamente, com um direito fundamental veiculado em princípio: a primeira representada pelo artigo 7, XXXIII, e a segunda pelo artigo 231, caput, ambos da Constituição Federal. Se assim é, a solução parece ser se aplicar, automaticamente, o teste da proporcionalidade em sentido estrito, no qual há a ponderação ou o sopesamento.
O ônus imposto ao direito sacrificado, expresso no artigo 7, XXXIII, da CF, é menor que o objetivo pretendido, qual seja, o reconhecimento e a proteção dos direitos culturais dos índios, pois que a decisão se refere apenas àquelas pessoas que possuem essas práticas culturais como próprias, inseridas num modo alternativo de vida que se diferencia do modo ocidental, conforme já supramencionado. Não há, por causa disso, prevalência hierárquica de uma norma em relação a outra; há apenas, uma acomodação, no processo de interpretação constitucional, do que prescrevem duas normas que, prima facie, supostamente estariam em conflito. Há a presença da direta proporcionalidade das grandezas envolvidas, i.e., quanto maior o grau de não satisfação do direito positivado no artigo 7, XXXIII, da CF, maior é a importância da satisfação do direito positivado no artigo 231, caput, da mesma CF. Há, também confiabilidade nas premissas empíricas, a partir do momento em que a interpretação do artigo 231, da CF, se constrói com base em dados coletados em perícia de caráter etno-histórico-antropológica, a qual fornece conhecimento adequado a respeito da diferente forma de viver dos índios. Em suma, eventual decisão reconhecendo o direito em causa será constitucional. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

Música de domingo

A busca pelo belo estético atingida nesta música. Mahler, Sinfonia n. 5, IV movimento, bem lento (sehr langsam):  http://www.youtube.com/watch?v=uOo8QoJEE6I . Paulo Thadeu.

sábado, 12 de junho de 2010

Música de sábado

Clássico do underground: http://www.youtube.com/watch?v=4wNknGIKkoA. Paulo Thadeu.

Princípio da proporcionalidade: parte I

O princípio da proporcionalidade é uma ferramenta utilizada para se resolver colisão de e restrição a direito fundamental. Colisão e restrição são coisas distintas. Colisão de direitos fundamentais se refere ao conflito entre dois direitos fundamentais veiculados sob a forma de princípios, estes que impõem deveres e garantem direitos prima facie. Em geral os direitos fundamentais vestem essa roupagem. A restrição a direito fundamental significa a existência de uma regra que está a restringir um direito fundamental, o que ocorre na maioria dos casos. Como exemplo do primeiro caso pode-se citar o conflito entre o direito de propriedade e a dignidade da pessoa humana em relação ao suporte fático representado pela reocupação de terras indígenas pelos índios, terras cuja titulação pertence a particular; como exemplo do segundo evento tem-se decreto que limita direito de reunião das pessoas. Quando houver colisão de direitos fundamentais aplica-se, diretamente, a proporcionalidade em sentido estrito; quando houver restrição, o princípio da proporcionalidade em sua inteireza, sendo certo que os três testes atinentes a esse princípio mantêm entre si uma relação de subsidiariedade, i.e., se a medida restritiva foi reprovada no primeiro teste não há a necessidade de que se faça o segundo. Por aí já se percebe que o princípio da proporcionalidade tem três testes: a) adequação; b) necessidade; c) proporcionalidade em sentido estrito. Pelo primeiro avalia-se se a restrição imposta a direito fundamental pela medida restritiva é útil a fomentar e/ou a alcançar o objetivo pretendido; pelo segundo avalia-se se não há medida menos danosa ao direito fundamental e que possa produzir o mesmo objetivo; pelo terceiro faz-se a ponderação/sopesamento atendo-se a algumas balizas, tais quais, o ônus imposto não pode ser maior que o benefício almejado, todas as normas constitucionais possuem mesma hierarquia, o grau de não satisfação de um direito é grandeza diretamente proporcional à importância da satisfação do direito colidente e a confiabilidade das premissas empíricas.
Embora esse princípio tenha sido construído já há algum tempo pela teoria alemã e tenha ganho popularidade suficiente a que conste de quase todo currículo de cursos de direito espalhados pelo país, sua aplicação pelos tribunais ainda se encontra em estágio inicial, como que engatinhando, seja na práxis dos tribunais inferiores, seja nos superiores e, com especial destaque, no STF. Assim é que várias decisões sobre restrição a direito fundamental são proferidas sem que se adote, expressamente, a metodologia que vem de ser descrita e que se refere ao princípio da proporcionalidade. Por certo que essas decisões não possuem como método apenas impulsos intuitivos, de vez que contêm racionalidade, contudo, não há um padrão a ser observado e extraído desses atos decisórios, e isso a despeito do acerto das soluções alcançadas. Há juiz no STF, por exemplo, que rejeita a aplicação do princípio, v.g., Min. Eros Grau no caso da ADPF n. 101, da importação do pneu usado, voto no qual afirmou que a ponderação de princípios é feita discricionariamente e por isso produz incerteza jurídica.
Sem embargo da existência desse tipo de afirmação, com a qual não se concorda, seja porque discorda-se da afirmação de que há discricionariedade pura e simples no ato de julgar, seja porque as conseqüências do decidido pelo uso desse método de interpretação não se revestem de incerteza jurídica, esta que é produzida, sim, pela falta de uma metodologia transparente e balizada por regras fixas e explícitas, é importante para a fixação das idéias a realização dos testes supracitados com relação a determinados atos que possam configurar restrição a direito fundamental. É o que será feito na próxima postagem. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Os novos direitos

A distinção e por vezes conflituosa relação entre direito e política traz à tona duas abordagens antagônicas: a) a primeira representada por aquilo que se convenciona denominar de novos direitos; b) a dificuldade contra-majoritária da jurisdição constitucional. Por novos direitos devem ser compreendidos aqueles que escapam à distinção capital/trabalho e espraiam seus efeitos por áreas tão diversas que não há mesmo possibilidade de se separá-las, por exemplo, direitos de gênero, de etnia, de raça, de orientação sexual, etc, fazendo da sociedade moderna uma poliarquia, no dizer de Dahl, ou mesmo uma sociedade diferenciada funcionalmente, no pensamento de Luhmann. A dificuldade contra-majoritária da jurisdição constitucional significa que o reconhecimento desses novos direitos por ela, jurisdição, apresenta um obstáculo à sua legitimação e que é aquele inerente a decisão oriunda de um tribunal no qual os juízes não são eleitos pela maioria, esta que se faz presente na política ou no Parlamento. Dessa breve descrição já se pode perceber o problema. É que aqueles que apostam todas as suas fichas na política entendem que a afirmação de direitos deve ser realizada por lei votada por uma maioria representativa dos eleitores. Contudo, se essa mesma maioria for contrária ao reconhecimento de direitos referentes a um determinado grupo este grupo restaria sem alternativa a fazer valer seus direitos. É o que poderia acontecer com o direito de adoção por pessoas cuja orientação sexual fosse diferente da predominante, que é a heterossexual. A Folha de São Paulo de hoje, sábado, publicou pesquisa feita pelo Datafolha segundo a qual a maioria dos brasileiros é contra essa forma de adoção. Portanto, e a depender da maioria parlamentar que reflita a vontade da maioria dos eleitores, essa matéria não seria aprovada no Parlamento. O direito, nesse caso, vem sendo reconhecido pelos tribunais, estes que, se apresentam a tal da dificuldade contra-majoritária, são instâncias de resguardo dos direitos das minorias, estas que aqui devem ser tomadas na conta de minorias de grupos e minorias eleitorais. Esse caso é bastante ilustrativo da reflexão que pode ser feita a respeito da suposta relação de embate que existe entre direito e política, e essa reflexão, no meu ponto de vista, deve ser temperada, no processo de discussão, pelo sopesamento das razões advindas dos dois polos da discussão, tudo para que se possa chegar a um ponto de arquimedes, um ponto de equilíbrio, representado pela existência do processo deliberativo parlamentar contrabalanceado pela existência da jurisdição constitucional: no primeiro garante-se o direito da maioria e no segundo o da minoria. Num exercício de interpretação constitucional mais adequado à sociedade moderna, seria como se pensar na Constituição como viva - living Constitution - e não na vontade original daqueles que a fizeram -originalism-.Um não exclui o outro, pelo contrário, mantêm entre si uma relação de complementaridade, tudo na consecução de se produzir uma mais adequada ordem social. É isso. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

Música de sábado

Um standard do jazz, Dave Brubeck e quarteto tocando Take Five, ritmo um pouco acelerado, diferente da versão que consta do cd Time Out, biscoito fino: http://www.youtube.com/watch?v=faJE92phKzI . Paulo Thadeu.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

O poder dos conselhos externos

Com a criação, pela EC n. 45/04, dos Conselhos Nacional de Justiça e do Ministério Público, produziram-se duas consequências imediatas, quais sejam, o surgimento de novas instituições do sistema de justiça e o aumento da complexidade ligado diretamente ao incremento de funções a ser desempenhadas por esses órgãos. Do debate da época, há mais de cinco anos, pouca crítica restou, pois que a mais forte delas, e a menos convincente, se referia a uma suposta violação do princípio federativo, argumento esse de tão pouca força persuasiva que ia mesmo contra o tal caráter nacional da magistratura e do ministério público, i.e., nem mesmo a teoria se entendia. Nos dias atuais, e já com um grau bastante alto de institucionalização dos conselhos, seja pela sua prática controladora e fiscalizadora, seja pela concretização mesma de alguns direitos fundamentais, os conflitos, necessários ao aperfeiçoamento dos órgãos, se revestem de outro significado. O tema do momento se traduz, por exemplo, no poder que tem o CNJ, se apenas administrativo ou também judicial. O STF vem se pronunciando, ainda não de forma solidificada, mas com fortes acenos nesse sentido, na direção de que o CNJ não possui poder judicial, vale dizer, é órgão judicial, mas não jurisdicional, este que estaria afeto apenas aos juízes. Esse, pelo menos, é o teor que se pode extrair das decisões proferidas nos MS 26580 e 27148 e na ADI 3367. Sem embargo dessas decisões, o próprio CNJ, no artigo 106, do seu Regimento Interno, na redação original veiculada pela Resolução n. 67, de 03.03.2009, bem como na nova redação trazida pela Emenda Regimental n. 01, de 09.03.2010, dispôs que: “art. 106: As decisões judiciais que contrariarem as decisões do CNJ não produzirão efeitos em relação a estas, salvo se proferidas pelo Supremo Tribunal Federal”; na nova redação ficou assim: “art. 106: O CNJ determinará à autoridade recalcitrante, sob as cominações do disposto no artigo anterior, o imediato cumprimento de decisão ou ato seu, quando impugnado perante outro juízo que não o Supremo Tribunal Federal”. A Associação dos Magistrados Brasileiros –AMB ajuizou a ADI n. 4412 contra esses dispositivos invocando como norma parâmetro o devido processo legal que estaria sendo violado e a competência do STF que estaria sendo usurpada. A ação pende de julgamento e coloca ao STF a oportunidade de se pronunciar a respeito dos limites do poder exercido pelo CNJ. Prima facie me parece que o dispositivo pode ser inconstitucional e isso porque retira do órgão jurisdicional a força de sua função primordial que é a de julgar, sendo certo que, segundo a jurisprudência que começa a se consolidar no STF o CNJ é órgão judicial, mas não jurisdicional: como, nesse quadro e então, prevalecer uma decisão administrativa sobre uma judicial? Subvertendo-se postulado consagrado do monopólio da jurisdição? Além disso, é de se ressaltar que a exceção feita nas regras regimentais analisadas com relação às decisões do STF faz com que as decisões oriundas desse Tribunal sejam como que marcadas por um símbolo superdimensional, i.e., conferindo a elas uma força extraordinária e de exceção se comparada às outras demais decisões provenientes dos órgãos judiciais. Esse caráter é assente na teoria, contudo, se a pequeno e médio prazo os mecanismos pelos quais essa qualidade se manifesta produzem como consequência o desafogar de processos e sua própria lentidão, a longo prazo quase que extermina a função de julgar dos demais órgãos judiciais, tornando-se quase que mera peça decorativa, pois o Supremo tudo pode e em todas as matérias, o que, de sua vez, torna aquele Tribunal um grande, mal comparando, shopping center, local em que as famílias vão para fazer compras, ir ao cinema, comer e estacionar seus carros com alguma segurança. E isso não é papel institucional a ser desempenhado por uma Corte que se pretende Constitucional. É isso. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Língua co-oficial é inconstitucional?

O Municipio de Tacuru, em Mato Grosso do Sul, por meio da Lei n. 848, de 24 de maio de 2010, reconheceu como língua co-oficial o guarani, tendo em vista que naquela cidade e região residem muitos indígenas dessa mesma etnia. A lei, quase uma cópia da Lei n. 145, de 11 de dezembro de 2002, do Município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, reconhece expressamente a língua portuguesa como sendo a oficial no Brasil e determina a prestação de serviços públicos básicos de atendimento na área de saúde nas duas línguas, bem assim em campanhas de prevenção de doenças e de tratamento, além de incentivar e apoiar o aprendizado e o uso da língua co-oficial nas escolas municipais e nos meios de comunicação, proibindo a discriminação de qualquer pessoas pelo uso da língua guarani. Essas iniciativas legislativas locais nas quais a população indígena seja significativa em termos de quantidade podem produzir valiosas reflexões a respeito do atual estágio de reconhecimento constitucional do multiculturalismo que marca a sociedade brasileira. Longe de se qualificar como a Constituição equatoriana, que positivou em suas normas formas alternativas de viver, a Constituição brasileira, ainda assim, positiva normas que permitem proposições legislativas tal qual faz exemplo a que vem de ser citada. As normas dos artigos 209, 215, 216 e 231, todas da Constituição Federal, parecem admitir uma interpretação que afirme a possibilidade de existência das diversas línguas indígenas ao lado do idioma oficial que é o português. Por certo que não se trata de eliminar ou mesmo fazer ruir a comunicação dos nacionais brasileiros com base na língua portuguesa, contudo, reconhecer, nos moldes em que traçadas na lei em referência, prestações de serviços públicos básicos àqueles que falam o guarani, de maneira co-oficial é realizar a dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Duas problematizações interessantes emergem desse quadro. Uma delas se refere a que a lei em análise poderia ser inconstitucional porque feriria o disposto no caput do artigo 13, da Constituição Federal, pelo qual se preceitua que a língua portuguesa é a língua oficial do Brasil. Essa suposta inconstitucionalidade não existe se se interpretar a Constituição como um todo, pois que as normas antecitadas permitem, porque reconhecem expressamente, que as línguas indígenas sejam faladas e, portanto, co-oficializadas. Outro seria o caso se houvesse simplesmente a supressão do português como idioma oficial do país, o que não ocorre, tendo em vista que o artigo 1o da lei em comento dispõe expressamente que a língua portuguesa é a oficial do Brasil. Alie-se a tudo o que vem de ser escrito que essa co-oficialidade de línguas não é novidade no direito constitucional da sociedade mundial, pois que a Espanha admite, p.e.x, a existência, ao lado da língua oficial que é o espanhol, a catalã. Uma segunda problematização tem a ver com a decisão proferida pelo STF no HC n. 72391, no qual ficou assentado que a petição deveria ter sido escrita em português, e não em espanhol, como fora sido. Duas ordens de observações se impõem: a) a uma, a lei de que se trata não prescreve que ato processual seja formalizado em guarani; b) a duas que, de lado a lei analisada, a decisão proferida já agora parece um pouco desajustada do modelo constitucional e internacional de direitos humanos, pois que tanto a Constituição, quanto normas internacionais incorporadas ao ordenamento jurídico nacional, v.g., a Convenção n. 169, OIT, permitem que réus e testemunhas se expressem em sua língua materna, enquanto ao Estado incumbe providenciar a interpretação. O que é importante ressaltar é que o caso de que ora se trata demonstra a complexidade da sociedade brasileira, que tem de, ao mesmo tempo, dispensar tratamento às questões jurídicas de caráter ocidental e portanto envolvente e de caráter tradicional referente às sociedades que formam o país. No limite, permite que se faça uma rica e bastante peculiar reflexão e demonstra que o país pode resolver, por si mesmo, suas próprias demandas. É isso. Sapere Aude! Paulo Thadeu.