O direito mais importante

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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Livros importantes sobre direitos humanos



segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Livros importantes sobre direitos humanos e direitos indígenas



Jurisdição indígena e jurisdição estatal: um estudo de caso

Jurisdição indígena e jurisdição estatal: um estudo de caso

O Tribunal de Justiça de Roraima decidiu em 18.12.2015, ao que parece, de forma inédita, a Apelação Criminal n. 0090.10.000302-0, reconhecendo a jurisdição indígena criminal. Tratou o caso do crime de homicídio praticado por Denilson contra Alanderson, ambos índios, dentro de território indígena, Comunidade Manoá. A própria sociedade indígena Tuxaua, reunida por suas comunidades Anauá, Manoá e Wai Wai, decidiu o caso e aplicou as seguintes sanções:
1.      O índio Denilson deverá sair da Comunidade do Manoá e cumprir pena na Região do Wai Wai por mais cinco anos com possibilidade de redução conforme seu comportamento;
2.      Cumprir o Regimento Interno do Povo Wai Wai, respeitando a Convivência, o costume, a tradição e moradia junto ao Povo Wai Wai;
3.      Participar de trabalho comunitário;
4.      Participar de reuniões e demais eventos desenvolvidos pela comunidade;
5.      Não comercializar nenhum tipo de produto, peixe ou coisas existentes na comunidade sem permissão da comunidade juntamente com o tuxaua;
6.      Não desautorizar o tuxaua, cometendo coisas às escondidas sem conhecimento do tuxaua;
7.      Ter terra para trabalhar, sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua;
8.      Aprender a cultura e a língua Wai Wai;
9.      Se não cumprir o regimento será feita outra reunião e tomar (sic) outra decisão.
Cabe acentuar que todo o procedimento supramencionado foi realizado sem mencionar em momento algum a legislação estatal, tendo apenas como norte a autoridade que seus usos e costumes lhe confere.  
O Ministério Público estadual, após oferecer denúncia contra Denilson, obteve decisão contrária, cuja justificativa ou fundamento judicial foi a impossibilidade de dois entes distintos decidirem sobre o mesmo fato – duplo jus puniendi –. Dessa decisão, recorreu o órgão ministerial e, já no segundo grau, houve manifestação do MP lá atuante pelo seu desprovimento.
O Desembargador Relator Mauro Campello proferiu substancioso voto no qual, embora discordasse da conclusão do juiz singular, acabou por chegar a mesma solução. De seu voto destaca-se: a) não se trata de duplo jus puniendi; b) trata-se, sim, de proibição do bis in idem; c) base da decisão é a Constituição Federal, art. 231, a Convenção 169, OIT, arts. 9 e 10 e o Estatuto do Índio, art. 57. A Turma Criminal respectiva desproveu o recurso.
Essa decisão coloca à discussão vários pontos muito importantes para a teoria dos direitos indígenas.
Em primeiro lugar, reconhece a jurisdição indígena, e a prestigia, em desfavor da estatal. Essa compreensão vem ao encontro da tese que advogo em meu livro Os direitos dos índios: fundamentalidade, paradoxos e colonialidades internas, segundo a qual, embora a Constituição de 1988 não tenha, expressamente, reconhecido a jurisdição indígena, ela existe e é praticada no interior das comunidades respectivas, sem que dela, muitas vezes, tenha mesmo ciência o direito oficial; quanto tem, já começa a produzir decisão como a que ora se analisa.
Em segundo lugar, a decisão toma como uma das normas para decidir o caso, aquela prevista no art. 57, do Estatuto do Índio, verbis:
Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.
Esse artigo, previsto em lei anterior à Constituição atual, editada ainda sob o paradigma normativo da integração, já não mais válido, apresenta condição de possibilidade de se manter adequado à nova ordem constitucional e internacional no que diz com os direitos dos indígenas.
É que ela valora positivamente os métodos próprios de solução de conflitos atinentes às sociedades indígenas e presentes nas comunidades correspondentes. Sofre ela, por assim dizer, um processo de atualização de sentido pelo quanto disposto na Convenção 169, OIT, arts. 9 e 10, citados na decisão e aqui colacionados:
Artigo 9o
 1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.
 2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
Artigo 10
 1. Quando sanções penais sejam impostas pela legislação geral a membros dos povos mencionados, deverão ser levadas em conta as suas características econômicas, sociais e culturais.
 2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento.
Estamos diante, aqui, de verdadeira cláusula de limitação à restrição a direito fundamental. O direito fundamental em questão é o dos indígenas de solucionar os conflitos entre índios e no interior de comunidade indígena com base em seus costumes e tradições. A restrição a essa ação, apresentada pelo art. 57, da Lei 6.001/73, é representada pela proibição de que os métodos respectivos sejam cruéis e infamantes e não se caracterizem como pena de morte; já na norma internacional incorporada ao ordenamento jurídico pátrio exige-se que os métodos sejam compatíveis com o sistema jurídico nacional e os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. E os limites a essas restrições traduzem-se em que, sendo os métodos tradicionais de solução de conflitos compatíveis com os padrões positivados nas normas de regência, o que quer dizer, proporcionais, serão eles admitidos.
Em terceiro lugar, e para muito além de uma crítica fácil e açodada, segundo a qual essas restrições se configuram como manifestações de uma certa colonialidade interna, a decisão em foco é uma demonstração da manifestação da interculturalidade, entendida como “a construção de relações entre grupos, lógicas, práticas e conhecimentos distintos e que tem por objetivo reparar situações de desigualdade”, na medida em que reconhece o legítimo exercício da jurisdição indígena, prestigiando-a, em detrimento de eventual ação no sistema jurídico estatal.
Por último, mas não menos importante, é de se destacar a utilização, pelo juiz de segundo grau, na decisão comentada, de citação de doutrina e casos jurídicos julgados em outros países, v.g., Estados Unidos, Austrália e Guatemala, o que demonstra o necessário conhecimento da teoria dos direitos dos povos indígenas da sociedade mundial por parte daqueles que produzem a comunicação do sistema jurídico, tudo a conferir uma maior abertura cognitiva ao próprio sistema jurídico da sociedade ocidental quando do estabelecimento de relações com os métodos tradicionais de solução de conflitos das sociedades indígenas.




sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

A responsabilidade penal do indígena

Em primeiro lugar é importante fazer uma distinção entre o direito penal indígena, aquele aplicado aos índios e pelos índios, e o direito penal oficial aplicado aos índios: o tema da imputabilidade penal do indígena se insere neste segundo caso. É que, de acordo com o que preceitua a Constituição, especial, mas não exclusivamente, no artigo 231, caput, e a Convenção 169, OIT, os indígenas têm os direitos fundamentais de proteção assim classificados: direito fundamental à diferenciação social, do qual decorrem os direitos ao território, à organização social e à cultura. Isso quer dizer que, embora a Constituição brasileira não positive, expressamente, a jurisdição indígena, reconhece os métodos de resolução de conflitos inerentes às sociedades indígenas baseados em costumes e tradições.
Sobre o direito penal indígena - DPI - e de acordo com o que leciona o penalista de escol Paulo Queiroz (http://www.pauloqueiroz.net/direito-penal-indigena/):
"1)A autonomia do DPI; consequentemente, são válidos os julgamentos feitos pelos povos e tribos indígenas, relativamente às infrações cometidas no seu território envolvendo seus membros; 2)Não obstante isso, é possível recorrer-se à justiça comum, nos termos do art. 5°, XXXV, da CF (princípio da inafastabilidade da jurisdição), quer por iniciativa da tribo, quer do próprio imputado, quer por órgão competente (FUNAI, MP etc.);3)O DPI não é aplicável a conflito envolvendo não-índio, ainda que ocorrido dentro de território indígena; 4)O DPI não incide, em princípio, sobre conflito ocorrido fora do território indígena, ainda que envolvendo índios; 5)O direito penal oficial é acessório/residual, relativamente ao DPI, e não o contrário, pois há de pressupor a impossibilidade de sua aplicação.
Acresço a isso tudo que não se trata propriamente da aplicação das regras de extraterritorialidade penal, pois que os territórios indígenas não se configuram como território soberano, de vez que aos povos indígenas, embora seja reconhecida autonomia e autogoverno, não lhes é permitida a secessão, conforme dispõe o artigo 46, da Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas -frise-se, soft law-.
Estabelecida essa necessária distinção, afirma-se que uma questão bastante importante e tormentosa para a compreensão do tema dos direitos indígenas é aquela relativa à imputabilidade penal do indígena. Sim, o indígena é penalmente imputável, desde que seja maior de 18 anos e não sofra de doença mental, não se considerando, apenas por ser indígena, como tendo desenvolvimento mental incompleto ou retardado - esta questão da capacidade tem sido revista inclusive no direito civil, pois que o novo Código, de 2002, em seu artigo 4, parágrafo único, preceitua que a capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial; essa lei, que ainda não existe, tem no Estatuto do Índio, Lei 6.001/73, seu equivalente funcional naquilo que não for contrária ao texto da Constituição de 1988 e da Convenção 169, OIT -.
Ora, se não se trata, então, de inimputabilidade, como interpretar a prática, por indígena, de fato típico, ilícito e culpável? 
Uma solução pode ser interpretar o fato pelo que dispõe o artigo 21, do Código Penal, que trata do erro de proibição ou sobre a ilicitude do fato, e isso porque, no Código Penal brasileiro não há uma disposição equivalente à do Código Penal peruano, verbis: "Art. 15: Erro de compreensão culturalmente condicionado - Quem, que por sua cultura ou costumes, comete um fato punível sem poder compreender o caráter delituoso de seu ato ou determinar-se de acordo com essa compreensão, é isento de responsabilidade penal. Quando, por igual razão, essa possibilidade tiver diminuído, a pena será atenuada.
Sobre o erro de compreensão culturalmente condicionado -embora haja doutrinadora que entenda ser dispensável sua positivação no ordenamento penal brasileiro, ver Janaina Conceição Paschoal, O índio, a inimputabilidade e o preconceito, in VILLARES, Luis Fernando [org.], Direito Penal e Povos Indígenas, Juruá, Curitiba, 2012, p. 85-, já há doutrina formadora de seu significado, v.g., Zaffaroni e Pierangeli, para quem erros de compreensão culturalmente condicionados manifestam-se "quando o indivíduo tenha sido educado numa cultura diferente da nossa, e desde criança tenha internalizado as regras de conduta desta cultura, como no exemplo dos enterros clandestinos do indígena" (Manual de Direito Penal brasileiro, RT, SP, 2015, p. 576); e Luis E. Francia Sánchez, Pluralidad cultural y derecho penal (In Derecho, 47/1993, Facultad de Derecho de la Pontifícia Universidad Católica del Perú, p. 493-523 (505-506).
Por sua vez, o Estatuto do Índio, Lei 6.001/73, trata das normas penais aplicadas aos indígenas nos artigos 56 e 57. No artigo 56 e parágrafo único, há a previsão, respectiva, de que no caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola, além do que as penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.
Da análise dessas normas pode-se extrair, de saída, a inadequação das palavras "grau de integração", porque, após o previsto na Convenção 169, OIT, artigo 1, 2, que trata do autorreconhecimento da identidade indígena, a classificação existente que separa os indígenas em isolados, em vias de integração e integrados já não mais tem validade. Portanto, não se trata de avaliar, o juiz, o grau de integração do indígena, mas sim da possibilidade, se vencível ou invencível, de ele compreender as regras de conduta de uma cultura diferente da sua, o que se afere mediante a elaboração de laudo antropológico.
Sobre o regime de cumprimento das penas o legislador optou pela menos drástica, pois encarcerar um índio, longe de sua comunidade, causa a ele um dano enorme exatamente por sua diferente cultura, o implica distintos modos de ser e de viver.
O artigo 57 preceitua que será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte. Esse artigo bem poderia sofrer uma atualização proveniente da Convenção 169, OIT, que em seu artigo 9, incisos 1 e 2: 1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros. 2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
Os artigos 58 e 59 tratam dos crimes contra os índios e não serão objeto de análise aqui neste estudo.
Por fim, o Projeto de Lei n. 236/2012, do novo Código Penal, traz um tópico intitulado Índios, no interior do Título III - Da Imputabilidade Penal, verbis:


Art. 33. Aplicam-se as regras do erro sobre a ilicitude do fato ao índio, quando este o pratica agindo de acordo com os costumes, crenças e tradições de seu povo, podendo o juiz levar em consideração, para esse fim, laudo de exame antropológico.
§1º A pena será reduzida de um sexto a um terço se, em razão dos referidos costumes, crenças e tradições, o indígena tiver dificuldade de compreender ou internalizar o valor do bem jurídico protegido pela norma ou o desvalor de sua conduta.
§2º A pena de prisão será cumprida na unidade mais próxima do local de habitação do índio ou do local de funcionamento do órgão federal de assistência.
§3º Na medida em que for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos indígenas recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros, podendo o juiz, conforme a gravidade do fato, a culpabilidade e as sanções impostas pela respectiva comunidade indígena, deixar de aplicar a pena ou reduzi-la em até dois terços.

Como ainda não é lei, não se há de analisá-lo aqui, contudo, a redação trazida pode já servir de material à reflexão dos estudiosos.
É isso.