Jurisdição
indígena e jurisdição estatal: um estudo de caso
O
Tribunal de Justiça de Roraima decidiu em 18.12.2015, ao que parece, de forma
inédita, a Apelação Criminal n. 0090.10.000302-0, reconhecendo a jurisdição
indígena criminal. Tratou o caso do crime de homicídio praticado por Denilson
contra Alanderson, ambos índios, dentro de território indígena, Comunidade
Manoá. A própria sociedade indígena Tuxaua, reunida por suas comunidades Anauá,
Manoá e Wai Wai, decidiu o caso e aplicou as seguintes sanções:
1. O
índio Denilson deverá sair da Comunidade do Manoá e cumprir pena na Região do
Wai Wai por mais cinco anos com possibilidade de redução conforme seu
comportamento;
2. Cumprir
o Regimento Interno do Povo Wai Wai, respeitando a Convivência, o costume, a
tradição e moradia junto ao Povo Wai Wai;
3. Participar
de trabalho comunitário;
4. Participar
de reuniões e demais eventos desenvolvidos pela comunidade;
5. Não
comercializar nenhum tipo de produto, peixe ou coisas existentes na comunidade
sem permissão da comunidade juntamente com o tuxaua;
6. Não
desautorizar o tuxaua, cometendo coisas às escondidas sem conhecimento do
tuxaua;
7. Ter
terra para trabalhar, sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua;
8. Aprender
a cultura e a língua Wai Wai;
9. Se
não cumprir o regimento será feita outra reunião e tomar (sic) outra decisão.
Cabe
acentuar que todo o procedimento supramencionado foi realizado sem mencionar em
momento algum a legislação estatal, tendo apenas como norte a autoridade que
seus usos e costumes lhe confere.
O
Ministério Público estadual, após oferecer denúncia contra Denilson, obteve
decisão contrária, cuja justificativa ou fundamento judicial foi a
impossibilidade de dois entes distintos decidirem sobre o mesmo fato – duplo jus puniendi –. Dessa decisão, recorreu o
órgão ministerial e, já no segundo grau, houve manifestação do MP lá atuante
pelo seu desprovimento.
O
Desembargador Relator Mauro Campello proferiu substancioso voto no qual, embora
discordasse da conclusão do juiz singular, acabou por chegar a mesma solução.
De seu voto destaca-se: a) não se trata de duplo jus puniendi; b) trata-se, sim, de proibição do bis in idem; c) base da decisão é a
Constituição Federal, art. 231, a Convenção 169, OIT, arts. 9 e 10 e o Estatuto
do Índio, art. 57. A Turma Criminal respectiva desproveu o recurso.
Essa
decisão coloca à discussão vários pontos muito importantes para a teoria dos
direitos indígenas.
Em
primeiro lugar, reconhece a jurisdição indígena, e a prestigia, em desfavor da
estatal. Essa compreensão vem ao encontro da tese que advogo em meu livro Os
direitos dos índios: fundamentalidade, paradoxos e colonialidades internas,
segundo a qual, embora a Constituição de 1988 não tenha, expressamente,
reconhecido a jurisdição indígena, ela existe e é praticada no interior das
comunidades respectivas, sem que dela, muitas vezes, tenha mesmo ciência o
direito oficial; quanto tem, já começa a produzir decisão como a que ora se
analisa.
Em
segundo lugar, a decisão toma como uma das normas para decidir o caso, aquela
prevista no art. 57, do Estatuto do Índio, verbis:
Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com
as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus
membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em
qualquer caso a pena de morte.
Esse artigo, previsto em lei anterior à
Constituição atual, editada ainda sob o paradigma normativo da integração, já
não mais válido, apresenta condição de possibilidade de se manter adequado à
nova ordem constitucional e internacional no que diz com os direitos dos
indígenas.
É que ela valora positivamente os métodos
próprios de solução de conflitos atinentes às sociedades indígenas e presentes
nas comunidades correspondentes. Sofre ela, por assim dizer, um processo de
atualização de sentido pelo quanto disposto na Convenção 169, OIT, arts. 9 e
10, citados na decisão e aqui colacionados:
Artigo 9o
1. Na medida em que isso for
compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos
internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais
os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos
cometidos pelos seus membros.
2. As autoridades e os tribunais
solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta
os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
Artigo 10
1. Quando sanções penais sejam
impostas pela legislação geral a membros dos povos mencionados, deverão ser
levadas em conta as suas características econômicas, sociais e culturais.
2. Dever-se-á dar preferência a
tipos de punição outros que o encarceramento.
Estamos diante, aqui, de verdadeira cláusula de
limitação à restrição a direito fundamental. O direito fundamental em questão é
o dos indígenas de solucionar os conflitos entre índios e no interior de comunidade
indígena com base em seus costumes e tradições. A restrição a essa ação,
apresentada pelo art. 57, da Lei 6.001/73, é representada pela proibição de que
os métodos respectivos sejam cruéis e infamantes e não se caracterizem como
pena de morte; já na norma internacional incorporada ao ordenamento jurídico
pátrio exige-se que os métodos sejam compatíveis com o sistema jurídico
nacional e os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. E os limites a
essas restrições traduzem-se em que, sendo os métodos tradicionais de solução
de conflitos compatíveis com os padrões positivados nas normas de
regência, o que quer dizer, proporcionais, serão eles admitidos.
Em terceiro lugar, e para muito além de uma
crítica fácil e açodada, segundo a qual essas restrições se configuram como
manifestações de uma certa colonialidade interna, a decisão em foco é uma
demonstração da manifestação da interculturalidade, entendida como “a
construção de relações entre grupos, lógicas, práticas e conhecimentos
distintos e que tem por objetivo reparar situações de desigualdade”, na medida
em que reconhece o legítimo exercício da jurisdição indígena, prestigiando-a,
em detrimento de eventual ação no sistema jurídico estatal.
Por
último, mas não menos importante, é de se destacar a utilização, pelo juiz de
segundo grau, na decisão comentada, de citação de doutrina e casos jurídicos
julgados em outros países, v.g., Estados Unidos, Austrália e Guatemala, o que
demonstra o necessário conhecimento da teoria dos direitos dos povos indígenas
da sociedade mundial por parte daqueles que produzem a comunicação do sistema
jurídico, tudo a conferir uma maior abertura cognitiva ao próprio sistema
jurídico da sociedade ocidental quando do estabelecimento de relações com os
métodos tradicionais de solução de conflitos das sociedades indígenas.
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