O direito mais importante

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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Jurisdição indígena e jurisdição estatal: um estudo de caso

Jurisdição indígena e jurisdição estatal: um estudo de caso

O Tribunal de Justiça de Roraima decidiu em 18.12.2015, ao que parece, de forma inédita, a Apelação Criminal n. 0090.10.000302-0, reconhecendo a jurisdição indígena criminal. Tratou o caso do crime de homicídio praticado por Denilson contra Alanderson, ambos índios, dentro de território indígena, Comunidade Manoá. A própria sociedade indígena Tuxaua, reunida por suas comunidades Anauá, Manoá e Wai Wai, decidiu o caso e aplicou as seguintes sanções:
1.      O índio Denilson deverá sair da Comunidade do Manoá e cumprir pena na Região do Wai Wai por mais cinco anos com possibilidade de redução conforme seu comportamento;
2.      Cumprir o Regimento Interno do Povo Wai Wai, respeitando a Convivência, o costume, a tradição e moradia junto ao Povo Wai Wai;
3.      Participar de trabalho comunitário;
4.      Participar de reuniões e demais eventos desenvolvidos pela comunidade;
5.      Não comercializar nenhum tipo de produto, peixe ou coisas existentes na comunidade sem permissão da comunidade juntamente com o tuxaua;
6.      Não desautorizar o tuxaua, cometendo coisas às escondidas sem conhecimento do tuxaua;
7.      Ter terra para trabalhar, sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua;
8.      Aprender a cultura e a língua Wai Wai;
9.      Se não cumprir o regimento será feita outra reunião e tomar (sic) outra decisão.
Cabe acentuar que todo o procedimento supramencionado foi realizado sem mencionar em momento algum a legislação estatal, tendo apenas como norte a autoridade que seus usos e costumes lhe confere.  
O Ministério Público estadual, após oferecer denúncia contra Denilson, obteve decisão contrária, cuja justificativa ou fundamento judicial foi a impossibilidade de dois entes distintos decidirem sobre o mesmo fato – duplo jus puniendi –. Dessa decisão, recorreu o órgão ministerial e, já no segundo grau, houve manifestação do MP lá atuante pelo seu desprovimento.
O Desembargador Relator Mauro Campello proferiu substancioso voto no qual, embora discordasse da conclusão do juiz singular, acabou por chegar a mesma solução. De seu voto destaca-se: a) não se trata de duplo jus puniendi; b) trata-se, sim, de proibição do bis in idem; c) base da decisão é a Constituição Federal, art. 231, a Convenção 169, OIT, arts. 9 e 10 e o Estatuto do Índio, art. 57. A Turma Criminal respectiva desproveu o recurso.
Essa decisão coloca à discussão vários pontos muito importantes para a teoria dos direitos indígenas.
Em primeiro lugar, reconhece a jurisdição indígena, e a prestigia, em desfavor da estatal. Essa compreensão vem ao encontro da tese que advogo em meu livro Os direitos dos índios: fundamentalidade, paradoxos e colonialidades internas, segundo a qual, embora a Constituição de 1988 não tenha, expressamente, reconhecido a jurisdição indígena, ela existe e é praticada no interior das comunidades respectivas, sem que dela, muitas vezes, tenha mesmo ciência o direito oficial; quanto tem, já começa a produzir decisão como a que ora se analisa.
Em segundo lugar, a decisão toma como uma das normas para decidir o caso, aquela prevista no art. 57, do Estatuto do Índio, verbis:
Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.
Esse artigo, previsto em lei anterior à Constituição atual, editada ainda sob o paradigma normativo da integração, já não mais válido, apresenta condição de possibilidade de se manter adequado à nova ordem constitucional e internacional no que diz com os direitos dos indígenas.
É que ela valora positivamente os métodos próprios de solução de conflitos atinentes às sociedades indígenas e presentes nas comunidades correspondentes. Sofre ela, por assim dizer, um processo de atualização de sentido pelo quanto disposto na Convenção 169, OIT, arts. 9 e 10, citados na decisão e aqui colacionados:
Artigo 9o
 1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.
 2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
Artigo 10
 1. Quando sanções penais sejam impostas pela legislação geral a membros dos povos mencionados, deverão ser levadas em conta as suas características econômicas, sociais e culturais.
 2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento.
Estamos diante, aqui, de verdadeira cláusula de limitação à restrição a direito fundamental. O direito fundamental em questão é o dos indígenas de solucionar os conflitos entre índios e no interior de comunidade indígena com base em seus costumes e tradições. A restrição a essa ação, apresentada pelo art. 57, da Lei 6.001/73, é representada pela proibição de que os métodos respectivos sejam cruéis e infamantes e não se caracterizem como pena de morte; já na norma internacional incorporada ao ordenamento jurídico pátrio exige-se que os métodos sejam compatíveis com o sistema jurídico nacional e os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. E os limites a essas restrições traduzem-se em que, sendo os métodos tradicionais de solução de conflitos compatíveis com os padrões positivados nas normas de regência, o que quer dizer, proporcionais, serão eles admitidos.
Em terceiro lugar, e para muito além de uma crítica fácil e açodada, segundo a qual essas restrições se configuram como manifestações de uma certa colonialidade interna, a decisão em foco é uma demonstração da manifestação da interculturalidade, entendida como “a construção de relações entre grupos, lógicas, práticas e conhecimentos distintos e que tem por objetivo reparar situações de desigualdade”, na medida em que reconhece o legítimo exercício da jurisdição indígena, prestigiando-a, em detrimento de eventual ação no sistema jurídico estatal.
Por último, mas não menos importante, é de se destacar a utilização, pelo juiz de segundo grau, na decisão comentada, de citação de doutrina e casos jurídicos julgados em outros países, v.g., Estados Unidos, Austrália e Guatemala, o que demonstra o necessário conhecimento da teoria dos direitos dos povos indígenas da sociedade mundial por parte daqueles que produzem a comunicação do sistema jurídico, tudo a conferir uma maior abertura cognitiva ao próprio sistema jurídico da sociedade ocidental quando do estabelecimento de relações com os métodos tradicionais de solução de conflitos das sociedades indígenas.




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