O direito mais importante

O direito mais importante

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O Incidente de Deslocamento de Competência e os direitos humanos

A Emenda Constitucional n. 45, de 31.12.2004, acrescentou o inciso V-A e o parágrafo quinto ao artigo 109, da Constituição Federal, com a seguinte redação:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
V-A. as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo.
§ 5º. Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

Essas normas, revestidas de um caráter de novidade, vieram atender aos reclamos dos movimentos de direitos humanos que indicavam a dificuldade em se apurar grave violação a direito humano pelo sistema de justiça estadual, em geral naqueles locais identificados como sendo o Brasil profundo. Logo após sua promulgação essas normas enfrentaram movimento crítico bastante forte, em especial do setor público estadual e de alguns doutrinadores que enxergavam nelas violação ao princípio federativo, juiz natural e devido processo legal. Esses argumentos foram descritos e combatidos, de forma adequada, por Ubiratan Cazetta, em seu livro Direitos Humanos e Federalismo – O incidente de deslocamento de competência, Atlas, SP, 2009.
O Superior Tribunal de Justiça, competente, originariamente, para julgar o incidente, teve a oportunidade de se manifestar em dois processos dessa natureza. No IDC n. 1, de 2005, que tratou do deslocamento da competência para processar e julgar o crime contra a missionária Dorothy Stang, no interior do Pará, o Tribunal da Cidadania, por unanimidade, indeferiu o IDC, ao fundamento de que um de seus três requisitos, qual seja, a incapacidade de o Estado-Membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal. Os outros dois requisitos, que são a grave violação a direitos humanos e assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais, estão expressos na norma constitucional. O STJ, portanto, nesse julgamento, interpretou o dispositivo constitucional atribuindo-lhe mais um sentido, este que não está expresso no texto constitucional.
A mesma linha de interpretação foi seguida no julgamento do IDC n. 2, suscitado pelo Procurador-Geral da República e tendo por suscitadas a Justiça do Estado da Paraíba e a do Estado de Pernambuco. Tratou-se, no caso, de se deslocar a competência para processar e julgar eventuais envolvidos na morte do Advogado e Vereador Manoel Bezerra de Mattos Neto, este que vinha, na fronteira entre os dois Estados-Membro, denunciando uma série de homicídios praticados por grupos de extermínio. Esse incidente foi deferido, parcialmente e por maioria, enviando-se o processo para a Justiça Federal da Paraíba -não por acaso, os dois votos contrários ao deferimento do IDC foram proferidos por Desembargadores de Tribunais de Justiça estaduais. Nesse processo manifestaram-se os três requisitos elencados pelo STJ no julgamento do IDC n. 1, sendo certo que, com relação à incapacidade das instâncias locais em oferecer resposta efetiva para o caso, as esferas de poder respectivas manifestaram-se nesse sentido.
Nos dois casos julgados chama a atenção: a) a possibilidade de se apresentar razões como amigo da corte – amicus curiae –; b) a fraca fundamentação, pelos Ministros, a respeito da idéia de direitos humanos; c) o IDC como instrumento referente a crimes que violem, gravemente, os direitos humanos. O primeiro destaque demonstra ser necessária a regulamentação, por lei, do IDC, o que não quer dizer que a norma constitucional que dele trate não possua imediata aplicabilidade, forte no que preceitua o artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal, aliado a que uma futura normatização não poderá, de forma satisfatória, positivar rol exaustivo do que venha a ser grave violação dos direitos humanos, pois que norteada estará, também, pela cláusula de abertura do disposto no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal. Sua normatização mais minudenciada, por lei, apenas regulamentaria, de forma oficial e talvez com mais segurança, as possibilidades processuais inerentes à espécie. O segundo destaque é a quase que inexistência de fundamentação a respeito da fundamentalidade do direito -há, sim, o pronunciar de uma ou outra platitude por parte desse ou daquele Ministro-, ou o que faz dele, direito, um direito fundamental, se o aspecto formal ou se o material, o que mostra a necessidade de que o ato de julgar, hoje, demanda um conhecimento específico a respeito da teoria geral dos direitos fundamentais por parte daquele que julga. O terceiro e último aspecto diz com a reflexão que deve ser empreendida a respeito do cabimento do IDC apenas quando se referir a crime ou também quando estiver envolvida, no caso, alguma questão de índole civil. Ubiratan Cazetta, doutrinando a respeito, lança mão de casos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos para argumentar em favor da possibilidade de se utilizar o IDC também com relação à questão civil, com o que se concorda, mas, ao que parece, ela, a questão civil, deve estar ligada à criminal, deslocando-se a competência da justiça estadual para a federal de todos os processos por assim dizer conexos. Remanesce, contudo, em aberto a questão a respeito da possibilidade de deslocamento da competência quando se tratar de grave violação de direitos humanos que se represente, por exemplo, com a não concretização, pelo Estado-Membro, de direitos fundamentais de caráter social.
O IDC é um dado da realidade constitucional e contra ele de nada adianta brandir argumentos de que está ele a ferir, por exemplo, o pacto federativo, até porque a Constituição Federal positiva em seu texto o instituto da intervenção federal e nem por isso se cogita de lançar mão dos mesmos argumentos contra esse instituto. Sua existência demonstra, no plano político, um arranjo estatal para que o país transforme sua realidade de violador, por ação ou por omissão, dos direitos humanos, e no plano jurídico, para que se tenha uma efetividade da tutela jurisdicional com relação a essas graves violações de direitos humanos: é um instrumento, portanto, que permite ao país começar a viver o processo civilizatório. É isso. Sapere Aude. Paulo Thadeu.

Um comentário:

  1. Muito esclarecedor o seu texto, nobre Professor Paulo Thadeu,especialmente por ser um tema tão polêmico, tanto que até o V exame unificado da OAB cobrou. Agradeço por disponibilizar esse espaço para que dele, nós, estudantes e profissionais abeberemos de tão etéreo saber!!!

    ResponderExcluir