O direito mais importante

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terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Encontro científico em Campo Grande, MS

No dia 22 de dezembro passado tive a honra de participar de um grupo de estudos criado pelo Professor Eurídio Ben-Hur Ferreira, da Universidade Católica Dom Bosco, na cidade de Campo Grande, MS, ao qual compareceram professores, profissionais e universitários de direito e cujo tema foi “direitos fundamentais”. A experiência é interessante porque permite a problematização dos conteúdos inerentes à matéria.
No decurso da discussão algumas ideias se manifestaram. A primeira delas é referente ao fato de que a história constitucional brasileira traz como marca indelével a vivência de períodos majoritários de anormalidade democrática, o que quer dizer que no Brasil sempre houve a decretação de estados de exceção, rompendo a normalidade democrática. Ao mesmo tempo, sempre houve Constituição como documento formal a se localizar no cume do ordenamento jurídico e com a positivação de direitos fundamentais. Aqui um paralelo pode ser traçado. É que o Brasil, à semelhança da França, teve várias constituições. Na França, país marcado pela volta da monarquia e pela republicanização do regime de governo, houve também várias constituições, contudo, naquele país, a Constituição nunca foi de fato valorizada na mesma proporção com que é valorizada em outros países ocidentais, o que pode ser comprovado pela inexistência de verbete específico na monumental obra denominada Les lieux de mémoire, na qual, em vez de se escrever sobre a Constituição, se escreveu sobre o Código Civil, portanto, ordenamento infraconstitucional. Além disso, o sistema de controle de constitucionalidade existente là-bas, preventivo, não se universalizou, e teve tomado seu lugar de primazia pelo controle repressivo deferido à jurisdição constitucional. Esses eventos podem ser melhor estudados pela Ciência Política e talvez possam explicar a timidez com que a teoria constitucional francesa se constrói e a própria falta de surgimento de grandes lideranças políticas, da qual é exemplo mais atual Le petit Nicolas.
No Brasil não há a ocupação equivalente do posto da Constituição pelo ordenamento infraconstitucional, ao menos no período republicano, ainda que no imperial o infraconstitucional, no que se referia à concessão do direito de liberdade aos escravos fosse fundamentada nas ordenações vigentes à época, portanto, ordenamento infraconstitucional, e não na Constituição. Contudo, aqui não se formou, ainda, a ideia de Constituição com uma força normativa tal que de fato se imponha às instituições para que estas tenham um funcionamento mais adequado ao que preceituam as normas constitucionais, e isso apesar de sempre haver um documento formal com esse nome, Constituição. Isso demonstra que não basta apenas a existência formal dessa Carta de direitos para que ela tenha eficácia. Necessita-se, mais do que isso, de criar-se uma cultura, em ambiente fértil, na qual ela se faça conhecida e seja discutida. Grupos de estudo são embriões desse grande projeto de viver a Constituição, esta que deve fazer parte do cotidiano mais ordinário de cada um dos habitantes deste país (e isso mesmo a despeito de a realidade nela descrita ser bastante complexa, o que já foi escrito por Kenzaburo Oe, em Jovens de um novo tempo, despertai!), e que pode começar pela necessária existência de um exemplar em cada domicílio brasileiro. O processo, espontâneo, pode ter força a impedir que, em eventual crise institucional, viva-se, no Brasil, novo período de anormalidade democrática.
Uma outra questão bastante importante para se refletir, de índole mais dogmática, diz com a ideia de que se pode emendar a Constituição, restringindo-se direito fundamental, mas sem atingir seu núcleo essencial. Eu nutro certa desconfiança com essa tese. O conteúdo essencial de um direito fundamental é aferido pela aplicação do princípio da proporcionalidade, ao menos para aqueles partidários da teoria relativa. É que se a restrição for aprovada pelo teste da proporcionalidade, logo não atinge o conteúdo essencial (Virgílio Afonso da Silva, Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, Malheiros, SP, 2009, p. 207).
Pois bem, é sabido que a restrição a um direito fundamental pode advir de qualquer instituição pública, aí incluídos os poderes e as demais organizações que compõem o Estado brasileiro. Assim, ponderar direitos é tarefa que incumbe não só ao Judiciário, mas a todas essas organizações que emitem decisões que podem restringir direito fundamental. O Legislativo, por exemplo, quando faz uma norma, seja ela constitucional, seja ela infraconstitucional, num processo espontâneo, pondera bens e valores para decidir por um ou por outro. Exemplo disso pode ser encontrado no Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja norma que impede o exercício de atividade laboral por parte do adolescente, em horário de aula, prefere, por razões várias, o direito à educação em detrimento do direito ao trabalho.
Nessa linha, embora todas as instituições que compõem o Estado brasileiro possam ser emissoras de atos restritivos a direito fundamental, apenas uma delas, o Judiciário, é a responsável pela decisão última a respeito da constitucionalidade ou não da restrição. Portanto, é o sistema jurídico que, obrigado a decidir, vai dar a última palavra sobre o tema, i.e., se a restrição criada atinge ou não o conteúdo essencial do direito fundamental. Por isso mesmo a tese que defende a possibilidade de se mudar a Constituição no que diz com os direitos fundamentais, restringindo-os, mas sem afetar seu núcleo essencial, é de todo inútil, a uma porque se constitui em uma platitude, pois que a história dogmática dos direitos fundamentais encontra sua razão de ser nas restrições operadas contra eles, caso contrário, no mundo constitucional ideal no qual não houvesse restrição a direito fundamental, não faria o menor sentido estudar o tema; e a duas porque o sistema incumbido de aferir se a restrição operada é constitucional ou não é o jurídico, no caso do Brasil, o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, e não o político. É isso. E que venham mais encontros científicos como esse. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

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