O direito mais importante

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terça-feira, 24 de agosto de 2010

As escolas de pensamento sobre os direitos humanos

Em um interessante artigo cujo título é What are human rights? Four schools of thought –O que são direitos humanos? Quatro escolas de pensamento (Human Rights Quarterly, v. 32, n. 1, February 2010, pp. 1-20)–, Marie-Bénédicte Dembour faz uma descrição do que ela observa como sendo escolas de pensamento existentes sobre os direitos humanos. São elas: a) escola natural; b) escola deliberativa; c) escola de protesto; d) escola discursiva. Para cada escola vai variar a compreensão que se tem dos direitos humanos. A escola natural, por exemplo, os concebe como um dado baseado na Natureza, em Deus, no Universo ou na Razão; a deliberativa os concebe como um acordo sobre eles, que de sua vez são baseados em um consenso sobre como a política deveria funcionar; a de protesto os concebe como uma luta por eles e baseados na tradição das lutas sociais e a discursiva os concebe como objeto de uma conversa sobre determinado tema e baseados na linguagem. De forma resumida essa é a descrição proposta pela autora.
Esse artigo pode servir de base a algumas reflexões valiosas a respeito dos direitos fundamentais, embora se refira aos direitos humanos. Como é sabido, a teoria se encarregou de distinguir entre direitos humanos e direitos fundamentais: aqueles seriam um conceito ligado à política, enquanto estes seriam um conceito ligado ao direito. Sem embargo da utilidade dessa distinção, importa, aqui, pensar em que a descrição proposta e referente às escolas de pensamento que serviriam de fundamento à existência dos direitos humanos pode produzir conseqüências na reflexão levada a cabo com relação aos direitos fundamentais.
A tese aqui assumida é a de que todas as quatro escolas de pensamento que tratam dos direitos humanos se manifestam na teoria dos direitos fundamentais, tomada esta na conta de descrição da doutrina e da própria norma constitucional positivada.
No que diz com a escola natural, segundo a qual os direitos humanos existem porque os seres humanos possuem direitos humanos só por serem seres humanos pode encontrar justificativa constitucional na inclusão de todos operada pelo sistema jurídico e, mais precisamente, pela Constituição, pois que defere, a todos os indivíduos e grupos, direitos fundamentais, ainda que essa idéia implique a existência simultânea de restrições. E ao menos ao nível positivo essa inclusão é universal, mesmo, reforça-se, com a manifestação de restrições.
Com referência à escola deliberativa, parece ser mesmo da essência da transformação dos direitos humanos em direitos fundamentais a sua presença, pois que o processo de positivação de uma idéia política representada por um direito humano é levado a efeito pela política, daí decorrendo o direito fundamental já positivado. Esse como que mágico toque da política em um direito humano para que se transforme em um direito fundamental é feito de forma originária ou derivada, naquela pelo poder constituinte que faz uma Constituição, nesta pelo poder constituinte que a reforma. O mesmo raciocínio vale para o poder que cria o ordenamento infraconstitucional, desde que se pense, e se admita, a existência de direito fundamental fora do texto constitucional.
Com relação à escola de protesto, embora negue o caráter universalizante dos direitos humanos, afirmando que o que é universal é o sofrimento, também ela se faz presente no sistema constitucional dos direitos fundamentais, pois que, se se observar os direitos fundamentais como um trabalho em progresso, pode-se concluir que outros direitos fundamentais podem ser positivados no ordenamento jurídico pela política, v.g., direito social à moradia e à segurança alimentar, artigo 6º, da Constituição Federal. O fato de que essa escola considera o sofrimento como universal em nada invalida o que aqui articulado, pois um fértil exercício de conceituação do próprio direito fundamental é aquele realizado pela análise de seu contrário: bem estar/sofrimento, igualdade/desigualdade, liberdade/coerção. No limite bem é de se argumentar que se não houvesse violação a direito fundamental não haveria, do mesmo modo, o menor sentido em se estudá-lo, pois que então viver-se-ia no melhor dos mundos constitucionais possíveis, idealização que nega a própria realidade, esta que, nessa percepção pode ser confundida com desejo.
Por fim, a escola discursiva, que afirma consistirem os direitos humanos em qualquer coisa que se inserir neles, e por isso são eles alguma coisa falha. Essa escola nega a própria realidade, esta que vem sendo construída há pouco tempo histórico e que apresenta um alto grau de institucionalização representada por práticas e decisões que promovem e protegem os direitos fundamentais. Por certo que uma dose de ceticismo sempre é útil à sociedade, e parece mesmo que essa escola existe para chamar a atenção para as deficiências estruturais que podem comprometer política e direito dos direitos humanos fundamentais. Contudo, uma pitada de razão acena em direção a essa escola, especificamente naquilo que se relaciona com a produção de uma certa legislação simbólica, como se a positivação de um direito humano em direito fundamental pudesse resolver os problemas gerados pela e na ordem social, v.g., positivar direito social ao lazer, trivializando-se um conceito que deveria ser, em essência, não banal, e mais, atribuindo-se a sua solução ao sistema jurídico, esquecendo-se do político e do econômico. Nesse particular a cética crítica parece ter procedência.
O que vem de ser escrito pode, tranquilamente, influenciar a discussão sobre o conceito de direitos fundamentais, pois, na proposta aqui desenhada, todas essas escolas se manifestam no sistema constitucional dos direitos fundamentais. A conclusão, por óbvio, vai depender do observador. É isso. Sapere Aude!

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