O direito mais importante

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domingo, 13 de junho de 2010

Princípio da proporcionalidade: parte II

Dando sequência ao que foi escrito na postagem sob título Princípio da proporcionalidade: parte I, neste momento serão feitos dois testes de aplicação desse princípio: a) o primeiro deles se refere à ADI n. 1969, já decidida pelo STF, mas sem a aplicação do princípio; b) a segunda se refere à ação civil pública ajuizada pelo MPF e que se encontra em grau de recurso junto ao TRF3.
No caso da ADI 1969 estava em jogo decreto do Governador do Distrito Federal que proibia a manifestação de pessoas na praça dos Três Poderes portando megafone e carro de som. No primeiro teste, que é a adequação, é de se perguntar se a medida restritiva era útil ao fim a que se propunha, talvez o de não atrapalhar as pessoas que estivessem trabalhando no mesmo local e no mesmo momento da reunião, sendo certo que naquela região há apenas funcionários públicos. De saída não parece adequado pensar que a medida seria útil ao objetivo pretendido, e assim se afirma porque, a despeito de não se emitir som com megafone e carro de som, os manifestantes bem poderiam começar a entoar cantos e a gritar palavras de ordem que pudessem produzir sons ou barulhos em igual ou mesmo maior potência. Demais disso, não se pode argumentar que o serviço público, uma vez a reunião se realizando com os instrumentos proibidos, sofreria solução de continuidade, pois que manifestações sempre são feitas por período determinado.
Contudo, e apenas para que se possa continuar a aplicar o teste seguinte da necessidade, considere-se, hipoteticamente, que a medida seja adequada. A necessidade manifesta-se pela inexistência de medida restritiva menos danosa ao direito fundamental. Na reflexão a respeito da medida em comento, poder-se-ia pensar numa regulamentação do direito de reunião na qual a própria potência dos instrumentos proibidos fosse regulada, restringindo-se, assim, em menor grau, o direito fundamental de reunião. Há, portanto, medida menos danosa que a simples proibição geral de portar as ferramentas próprias ao exercício do direito de reunião.
Todavia, e também apenas com o intuito de se aplicar o último teste, conclua-se que a medida é necessária. Na aplicação do terceiro teste, i.e., a proporcionalidade em sentido estrito, a primeira pesquisa que deve ser feita é saber se o ônus imposto é menor que o benefício almejado. No caso o ônus imposto ao direito de reunião é representado pela proibição de portar megafone e carro de som, ao que parece, com vistas a resguardar a tranqüilidade e o direito das pessoas que querem continuar trabalhando na mesma área e no mesmo momento em que ocorre a reunião. Na avaliação a ser feita o ônus criado fere, em sua essência, a concretização do direito de reunião, pois que este, para se realizar, necessita dos instrumentos proibidos para que a reunião possa ter coordenação ou um mínimo de. Sem essa possibilidade, não há como se efetivar o direito de reunião. Além disso, o objetivo pretendido, nesse quadro, é de menor importância que a proibição gerada pela regra, de vez que, parece ser de todos sabido, aqueles que estão a trabalhar em momento específico no qual se realiza a reunião, embora possam, em tese, ser atrapalhados pelos sons emitidos da manifestação de protesto, não se encontram impedidos, de forma absoluta, de exercer suas atividades. O atrapalho é, por assim dizer, o custo que se paga por viver em uma democracia. Dessa forma, a medida ora analisada não é proporcional em sentido estrito. Seja por uma razão, seja por outra, é ela inconstitucional, o que foi reconhecido pelo STF.
O segundo caso se refere a uma ação civil pública proposta pelo MPF com o objetivo de que o INSS se abstenha de indeferir pedido de auxílio gestante às índias menores de 16 anos e grávidas que já trabalhem, desde cedo, com os pais nas respectivas áreas indígenas. Esta questão trata, prima facie, de uma colisão de direitos fundamentais, o primeiro positivado na norma do artigo 7, XXXIII, da Constituição Federal, pela qual se proíbe o trabalho do menor de 16 anos, com exceção, a partir dos 14, do menor aprendiz. Essa norma, ao que parece, é uma regra, e não um princípio, pois impõe dever e garante direito de forma definitiva. O outro direito fundamental é expresso pelo que diz a norma do artigo 231, caput, da Constituição Federal, que reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Nesse quadro, os índios trabalham com suas famílias, desde muito cedo, nas lidas diárias realizadas nas terras indígenas.
Esta questão é um pouco mais complexa do que a primeira, porque aqui o que discute não é uma relação de restrição pura e simples, mas sim um conflito entre um direito fundamental ocidental e um direito fundamental tradicional, ainda que ambos se positivem num marco regulatório nitidamente ocidental, que é a Constituição. De um lado há a proibição ocidental do trabalho do menor no sentido de se impedir a exploração das crianças, contudo, o trabalho desempenhado pelos menores indígenas em suas famílias não se caracteriza pela exploração presenciada na sociedade envolvente, pois que não há, na produção indígena, preocupação com a produção de excedentes visando à comercialização, até porque a relação estabelecida pelo índio com a terra é de sacralidade, e não de economicidade.
Por outro lado, é dos costumes indígenas a realização de casamentos entre as pessoas com idade bastante nova, de modo que essas uniões podem servir de base à concessão do benefício, não se aplicando, aqui também, os institutos civis da capacidade.
A medida judicial que deferiu a liminar e que é objeto de recurso no TRF3 não restringe direito fundamental, pelo contrário, concretiza uma sua espécie, que é o direito cultural dos índios. Portanto, não se trata de regra restritiva de direito fundamental. Em caráter excepcional, então, pode-se pensar que este é um caso de regra colidindo, diretamente, com um direito fundamental veiculado em princípio: a primeira representada pelo artigo 7, XXXIII, e a segunda pelo artigo 231, caput, ambos da Constituição Federal. Se assim é, a solução parece ser se aplicar, automaticamente, o teste da proporcionalidade em sentido estrito, no qual há a ponderação ou o sopesamento.
O ônus imposto ao direito sacrificado, expresso no artigo 7, XXXIII, da CF, é menor que o objetivo pretendido, qual seja, o reconhecimento e a proteção dos direitos culturais dos índios, pois que a decisão se refere apenas àquelas pessoas que possuem essas práticas culturais como próprias, inseridas num modo alternativo de vida que se diferencia do modo ocidental, conforme já supramencionado. Não há, por causa disso, prevalência hierárquica de uma norma em relação a outra; há apenas, uma acomodação, no processo de interpretação constitucional, do que prescrevem duas normas que, prima facie, supostamente estariam em conflito. Há a presença da direta proporcionalidade das grandezas envolvidas, i.e., quanto maior o grau de não satisfação do direito positivado no artigo 7, XXXIII, da CF, maior é a importância da satisfação do direito positivado no artigo 231, caput, da mesma CF. Há, também confiabilidade nas premissas empíricas, a partir do momento em que a interpretação do artigo 231, da CF, se constrói com base em dados coletados em perícia de caráter etno-histórico-antropológica, a qual fornece conhecimento adequado a respeito da diferente forma de viver dos índios. Em suma, eventual decisão reconhecendo o direito em causa será constitucional. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

2 comentários:

  1. Muito bons os textos Paulo. A aplicação do princípio da proporcionalidade tem se mostrado cada vez mais importante. Apesar de o Min. Eros Grau entender que a ponderação de princípios é feita discricionariamente e produz incerteza jurídica, na minha opinião a não aplicação deste princípio é que traz insegurança jurídica, uma sensação de não se resolver o conflito existente em cada caso. Nenhum princípio é absoluto e a utilização de metodologia para aplicação do princípio torna o processo de aplicação muito mais seguro, como você bem escreveu.
    O princípio também tem sido discutido de forma interessante no processo penal, com as interceptações telefônicas e aproveitamento de prova ilícita, como você também deve saber.

    Um grande abraço,

    José Pissini Neto.

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  2. Caro Neto, o princípio da proporcionalidade, traduzido mais recentemente por Virgilio Afonso como máxima da proporcionaidade, livro do Robert Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, vive, no Brasil uma situação paradoxal, pois ao mesmo tempo em que ganha um corpo teórico bastante forte representado pela produção de doutrina a seu respeito, não é aplicado pelo STF e, diria eu, ao menos com relação à realidade do Tribunal perante o qual atuo, também pelos tribunais inferiores. Esse incremento da reflexão a respeito do princípio, com certeza, se espraia por quase todas as áreas do Direito, seja ela processual ou material. Concordo com você quando afirma ser contrário à argumentação do Min. Eros. É isso. Abraço e obrigado pelos sempre pertinentes comentários. Paulo Thadeu.

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