O direito mais importante

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terça-feira, 29 de junho de 2010

A questão da ficha limpa

A coloquialmente denominada questão da ficha limpa envolve uma discussão constitucional bastante interessante. O quadro atual no qual ela se apresenta resume-se em saber se a Lei Complementar n. 135, de 4/06/2010, nos vários artigos que positivam a redação “decisão proferida por órgão colegiado”, é constitucional ou não. Essa lei complementar veio regulamentar o disposto no artigo 14, § 9, da Constituição Federal, que dispõe que “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.
A questão não é nova. Na década de 1970, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, no RE n. 86297, que a inelegibilidade prevista no artigo 1, I, n, da Lei Complementar n. 5/70, era parcialmente constitucional. Esse artigo preceituava: “Art. 1: São inelegíveis: I: para qualquer cargo eletivo: n) os que tenham sido condenados ou respondam a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente, por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública e a administração pública, o patrimônio ou pelo direito previsto no art. 22 desta Lei Complementar, enquanto não absolvidos ou penalmente reabilitados”.
Esse caso é bastante interessante porque nele o STF decidiu que a cláusula de abertura constante do então artigo 153, § 36, Constituição de 67/69, hoje transcrito no artigo 5, § 2, da Constituição atual, não albergava o princípio da presunção da inocência, de vez que na Constituição de 67/69 esse direito fundamental não veio positivado expressamente em seu texto. Os votos então proferidos, muito bem fundamentados, são verdadeiras aulas de direito, daí decorrendo a impossibilidade de sua descrição neste espaço.
Ao lado do destaque já feito acima, pode-se extrair, como resumo, que a quaestio juris se refere à possibilidade ou não de se aplicar a presunção de não culpabilidade às causas de inelegibilidade que se fundem em aspectos relativos à moralidade do candidato, redação essa prevista no artigo 151, da Constituição de 67/69 e no 14, § 9, da Constituição atual. A perfeita tradução dessa questão é representada pela natureza que se deva conferir à própria inelegibilidade: é ela pena ou não? Se considerá-la como pena o princípio da presunção da não culpabilidade incidirá e a consequência dessa incidência será a de se considerar inconstitucional a redação da lei complementar atual que não traga consigo a exigência do trânsito em julgado, tendo em vista o disposto no artigo 5, LVII, da Constituição atual; se não for considerada pena, o princípio não incidirá.
Essa foi a tônica do voto vencedor do Min. Arnaldo Versiani, do TSE, em resposta à Consulta n. 1147-09.2010.6.00.0000, que firmou, por maioria, a premissa de que a inelegibilidade não é pena, trazendo à colação a compreensão construída pelo próprio TSE nos Recursos n. 9797/92 e 8818/90, como também do STF no MS n. 22.087. Para complicar um pouco mais o quadro de discussão constitucional, é forçoso lembrar que na ADPF n. 144 o STF decidiu, por maioria, julgando improcedente a ação, que a norma do artigo 14, § 9, da Constituição Federal não é auto-aplicável, contudo, não houve uma uniformidade nos fundamentos apresentados, sendo certo que em alguns votos ficou a compreensão de que mesmo com a regulamentação do dispositivo por lei complementar – o que já é realidade neste momento – haveria a necessidade de trânsito em julgados de decisões judiciais que se referissem à improbidade do candidato, interpretação essa que consta de forma bastante forte na Ementa do Acórdão.
Do ponto de vista político é irônico que se esteja a discutir esse tipo de questão constitucional, pois que ela existiu nos tempos de ditadura militar; do ponto de vista histórico demonstra que não há uma linearidade da história em direção a um mundo novo e sem recorrências ao passado; do ponto de vista jurídico-constitucional o STF terá de se manifestar, novamente, a respeito do tema. É isso. Sapere Aude! Paulo Thadeu.

3 comentários:

  1. Salve, dr. Paulo! Muito interessante este escorço da história institucional da inelegibilidade no Brasil, a demonstrar que dificilmente se parte de um grau zero de sentido quanto a qualquer direito "novo" ou decisão judicial. Quanto ao caráter de pena, vejo que seria bastante difícil afastar esta analogia mas, ao mesmo tempo, considero que os fatos já examinados em outro processo -- que não o da inelegibilidade -- para os quais foi prescrita pena não deveriam gerar um segundo gravame dessa natureza, daí porque a tornar-se inelegível talvez não possa ser tomado como uma pena em si mesma, mas tão-somente um consectário daquela. Apenas ideias soltas, sem pretensão de análise mais funda, da qual, por minha absoluta falta de intimidade com o direito eleitoral e penal, sou incapaz. Abraço, Adriana

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  2. Cara Adriana, é interessante que se volte a discutir e a se defender um tema, na democracia, que foi consolidado na ditadura militar. Prima facie me parece que o princípio da presunção de não culpabilidade, ainda que expressamente previsto na Constituição como adstrito à esfera penal, tem uma força tal de significado que se espraia por todos os outros ramos do direito, mesmo o eleitoral, alcançando seus efeitos até as inelegibilidades. Mas esta é apenas uma opinião, uma doxa, como diriam os gregos, sem pretensão de ser episteme, o verdadeiro conhecimento. Obrigado pelo comentário e um abraço, Paulo Thadeu.

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  3. Tanto tem força o princípio da presunção da não culpabilidade, que já há duas decisões afastando a aplicabilidade da lei, em face de parlamentares. Não me lembro se exatamente fundadas no princípio. De qualquer forma, ele deve ter feito parte (espero) do horizonte dos juízes que as deram: Ministros Gilmar Mendes e Dias Tofolli. Talvez essas decisões venham a ser objeto de seus comentários nos próximos dias. De qualquer modo, me preocupo sempre com o cidadão comum, não versado no direito, e suas interpretações -- ainda que por vezes apressadas -- de qual ou tal lei, "vale" ou "não vale". Abraço, Adriana

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